São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 1995
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Brown hipnotiza a platéia e ela dorme

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

A edição paulistana da série Heineken Concerts se encerrou no fim-de-semana com um fiasco e um imprevisto.
O fiasco foi assinado pelo compositor e percussionista baiano Carlinhos Brown. Na noite de sexta, ele promoveu uma amadorística micareta no palco do Palace, com direito a capoeira e até desfile de toalhas.
O imprevisto ficou por conta do compositor mineiro João Bosco. Ele e seus sete convidados contrariaram as expectativas criadas pela crítica carioca e materializaram cenas de alta densidade musical.
Quem chegou atrasado ao Palace na sexta pensou ter se enganado de local e entrado sem querer em uma sessão do filme "Debi e Lóide" (Dumb and Dumber). Deparou-se com a performance de Arto Lindsay e Arnaldo Antunes.
A dupla passou dos limites da comicidade. Carlinhos pouco pôde intervir, já que Arto é produtor do seu disco internacional e o poeta Arnaldo, amigo de fé, irmão e camarada deste.
Arnaldo acha que tudo é válido "a nível de" proposta. Encarnou um Titã rápido e, em mangas de camisa dois números maior que o seu, grunhiu alguns de seus "mudernos" poemetos concretos. O público vaiou. Às vezes a voz do povo não é a da razão. Deveria ter caído na gargalhada.
O lema da dupla Arnaldo & Arto provém de outro filme, "Quanto Mais Idiota Melhor". Enquanto o poeta zanzava pelo palco, Arto fazia voz mole, munido de guitarra. Citou um samba de Geraldo Pereira e feriu um riff de guitarra supercabeça. Arnaldo se sacudiu e interpretou uma composição de sua lavra, que mais parece Tom Zé requentado.
Foi o momento culminante de um show incrível. Carlinhos Brown usou de seu panelão de ritmos para hipnotizar a platéia. Esta correspondeu e dormiu além da conta. Foram 2 horas e 20 minutos de sonoterapia.
O espetáculo de contemporâneo só teve a data, e esta felizmente já passou. Brown não tem envergadura artística para ser anfitrião de uma noite que tinha como convidado o cantor senegalês Youssou N'Dour, dono de um arte cada vez mais requintada.
Não que Brown não tenha méritos. Tem voz bonita, djavanesca e algumas de suas composições são gostosas e originais. É o caso de "Seu Zé", uma canção neotropicalista a figurar no seu disco.
O problema está na superexposição. Brown é mais um baiano de microondas. Foi esquentado tão rapidamente quanto vai esfriar. Seu talento poderia desabrochar com o tempo. Mas o pop tem pressa e Brown quer rebolar vestido de pajé com fraque e desfilar com toalha e guarda-chuva. Pipoca de microondas murcha. Ou, para contradizer um verso de Moraes Moreira, mancha de dendê sai.
A noite de sábado mostrou o avesso. Oito músicos curtidos na longa vida profissional mostraram com quantas invenções se faz música.
Em duas horas e 18 músicas, João Bosco conteve o ímpeto do vocalise e dosou sua participação com as do pianista César Camargo Mariano, os percussionistas Paulinho da Costa e Marçal, o guitarrista Victor Biglione, o baixista norte-americano John Patitucci, o baixista Jamil Joanes e o clarinetista Paulo Moura.
O equilíbrio sonoro foi irrepreensível. O público cinqentão sentiu a consciência de harmonia e arranjo no resultado.
Bosco mostrou um estilo depurado ao violão. Contendo a voz, chegou finalmente a um terreno de genuína experimentação. Comandou a noite com punho firme. Está melhor ao vivo do que em disco.
Revezou músicas suas e clássicos da MPB, como "Tico-tico no Fubá" (Zequinha de Abreu), "Expresso 2222" (Gilberto Gil) e "Gago Apaixonado" (Noel Rosa).
Paulinho da Costa fez uma escola-de-samba com apenas um chocalho. Nada a ver com o exibicionismo que acomete os percussionistas nativos.
Paulo Moura detém o segredo da arte perdida do sopro brasileiro. Toca como se estivesse numa gafieira dos anos 30. Seus solos revelam o potencial de uma escola que foi abortada. Patitucci estava bobo-alegre em meio ao ninho de virtuoses e acompanhou o samba.
Surpresa maior foi Mariano. Pelo menos por uma noite, ele trocou seus chatos sintetizadores pelo piano e o toque bossa-novista.
A chamada noite da MPB virou a noite dos maestros. E da verdadeira música contemporânea.

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