São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 1995
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Crítico desvenda os enigmas da cidade

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Nos anos 80, Barcelona era a Disneylândia de gente dita e tida como descolada. "Uau! Que delírio de arquitetura! Coisa de mar ciano!", era o que se ouvia à frente de um prédio de Gaudí.
Acabou o delírio. "Barcelona", livro de Robert Hughes, desbasta 2.000 anos de vida da cidade na costa da Espanha, mata o mito e mostra a história.
Não há nada mais distante do delírio do que o arquiteto Antoni Gaudí (1852-1926), segundo Hughes, crítico de arte da revista "Time" e autor de "A Cultura da Reclamação" (um cascudo na mania do politicamente correto).
Gaudí era um católico fervoroso e conservador, fanático pelo nacionalismo catalão e achava que "a democracia é o governo da ignorância e da estupidez".
Hughes deixa intocada a genialidade de Gaudí, mas desmonta o suposto delírio de suas obras. Faz isso reconstituindo a história do arquiteto.
Aí, obras como a igreja Sagrada Família, um monumento de torres tortas, fachada inclinada e formas retorcidas, deixam de parecer coisa de maluco.
Gaudí nasceu no campo e era fanático por plantas, pedras e insetos. Achava que a natureza era "o grande livro" do arquiteto.
Hughes diz que deve-se ver a natureza onde se via delírio nas torres tortas da Sagrada Família -uma obra que Gaudí co meçou em 1884 e ainda está em construção, sem previsão para terminar.
As torres tortas seriam árvores estilizadas e as superfícies retorcidas imitariam os interiores das cavernas que Gaudí visitava nos Pirineus, a cadeia de montanhas que separa a Espanha da França.
Seu apego à tradição levou-o a estudar a arquitetura medieval catalã, considerada por Hughes como um dos dois grandes períodos de criação em Barcelona junto com o surto inventivo que assolou a cidade no final do século 19.
É desse cruzamento de culto à natureza, de religiosidade, de tradicionalismo e de ligação com o mundo artesanal que nasce a obra do arquiteto.
Gaudí não estava sozinho na empreitada de inventar uma nova arquitetura catalã, segundo Hughes. Ele diz que havia pelo me nos outro "gênio" -Lluís Domènech i Montaner (1849-1924)- e "um terceiro próximo da genialidade"- Josep Puig i Cadafalch (1867-1957).
Domènech criou um dos poucos hospitais agradáveis do mundo, se é que é possível existir hospital agradável. É o Santa Creu i Santa Pau (Hospital de Santa Cruz e São Paulo), concluído em 1910.
Concilia cores, árvores, vitrais e praticidade. Para Hughes, é a única obra de Barcelona que rivaliza em porte com a Sagrada Família de Gaudí.
"Tudo anuncia o surgimento de uma nova era para a arquitetura", escreveu em 1878. Estava certo.
Uma rua de Barcelona resume a novidade. É a Passeig de Gràcia, onde estão concentrados um prédio de Gaudí (Casa Battló), um de Domènech (Casa Lléo Morera) e um de Puig (Casa Amatller).
Foi nessa área de Barcelona que um engenheiro socialista, Ildefons Cerdà (1815-1876), deixou na cidade uma marca tão forte quanto as de Gaudí.
É o Eixample (Ampliação), bairro criado a partir de 1860 que antecipa o planejamento "racional" do século 20. Previa quarteirões de 113,3 m e hospital e parque a cada 400 quadras.
Os empreiteiros quase destruíram o bairro ao empilhar prédios não previstos no projeto, mas a generosidade de Cerdà sobreviveu.
"Barcelona" pode ser lido como uma guia turístico por turistas que não se contentam com o vapt-vupt habitual das viagens.
Seu único incoveniente é o prolixidade de Hughes. Ao contar a história da cidade desde a chegada dos romanos (15 a.C.) até 1926, acaba entulhando as 614 páginas com minúcias políticas que só devem interessar a catalães fanáticos.

Livro: Barcelona
Autor: Robert Hughes
Tradução: Denise Bottman
Preço: R$ 34,00 (614 págs.)

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