São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 1995
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ONGs, uma paixão

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

Poucas coisas me divertem tanto quanto a recente paixão da esquerda pelas chamadas "organizações não-governamentais", pois ela sucede a uma não menos apaixonada ojeriza, igualmente recente. As ONGs são um tipo de organização altamente militante e politizada, que tem no Estado seu principal interlocutor e razão de ser, e reivindica para si um monopólio de verdade e justeza ética sobre algum valor, ideal ou política. E vive da largueza da má-consciência das camadas bem-pensantes dos países ricos.
Nada mais estranho à esquerda do que a teoria política que atribui, à iniciativa voluntária dos indivíduos, a defesa da liberdade e dos direitos individuais contra a tendência dos Estados à tirania. Sua formulação clássica vem de Stuart Mill, mas a versão mais bem-sucedida é a de Tocqueville, inspirada no associativismo norte-americano, que por sua vez se revelou de grande utilidade na Guerra Fria.
Sim, pois antes de se tornar um porta-voz preferencial das novas grandes causas da esquerda, o tema e a presença das Organizações Não-Governamentais foram introduzidos nos fóruns internacionais pelos norte-americanos, como instrumento de contenção da expansão soviética.
O objetivo da época é compreensível: encontrar interlocutores alternativos aos governos estatistas, neutralistas ou francamente pró-socialistas que grassavam tanto na Europa quanto em número significativo dos países mais importantes do Terceiro Mundo, como Brasil, Índia, Indonésia...
O Congresso norte-americano chegou a criar uma fundação, especializada em financiar ONGs naqueles países, com o objetivo de difundir os ideais da democracia e da liberdade do mercado. Afinal, os liberais acreditam na sociedade e, a esquerda, no Estado.
Uma série de fatores deu grande impulso às ONGs, que se beneficiaram do fenômeno de transnacionalização de opinião pública e da ação política. Beneficiaram-se, também, do refluxo da revolução cultural e política do final da década de 60, que produziu um superávit de militantismo e um déficit de revoluções. Beneficiam-se, sobretudo, de uma concepção muito arraigada na elite das sociedades dos países ricos, isto é, de que ninguém melhor que elas sabe o que é melhor para nós. Além disso, receber dinheiro estrangeiro para influenciar a política nacional deixou de ser razão de condenação ou menoscabo.
A esquerda tinha razão quanto às ONGs ("une fois n'est pas coutume"). São demasiado maniqueístas com relação ao Estado e, em geral, às autoridades. São jacobinas, pois julgam ter o direito de impor suas próprias concepções a sociedades que mal conhecem. São monotemáticas e por isso têm dificuldade em admitir outros pontos de vista ou outras dimensões de um problema. Tendem a ser adeptas da ação direta, privilegiando seu conceito particular de justiça acima do direito vigente no país onde atuam, entre outras coisas porque seus temas, métodos de ação e recursos vêm do exterior.
Por isso não me surpreendeu que a "American Watch", uma ONG originada e financiada nos EUA, quisesse, recentemente, nos dar lições de democracia, considerando-se até em posição de julgar a legitimidade ou não de nosso pleito.
Ao contrário: poucos países, se algum, levam às urnas, de dois em dois anos, mais de 90% da população acima de 16 anos, em processo controlado por uma Justiça independente do Executivo e dos partidos, e com a mídia operando em tempo real.
Além disso, convenhamos, os poucos brasileiros que, num momento de açodamento diante da derrota eleitoral iminente, clamaram por uma intervenção internacional, já fizeram, ao que parece, "amende honorable".
Tampouco me surpreendeu que o secretário-geral da Anistia Internacional, Pierre Sané, coroasse seu périplo pelo circuito do turismo da miséria e da violência, que tanto encanta essa nova casta de burocratas transnacionais, com demonstrações de tamanha desenvoltura e ignorância sobre nossa política interna.
O sr. Pierre Sané está coberto de razão ao dizer que "não se pode esquecer o passado" (Folha, 12/4/95), se com isso quer lembrar que a memória (pessoal) da ofensa clama por vingança (privada). Mas parece ignorar que o Estado de Direito não se sustenta onde os particulares mantenham a prerrogativa de decidir quando julgar e como punir seus inimigos.
A anistia -cuja teoria política e cuja conveniência histórica a organização do sr. Sané não compreende ou não aceita- é uma lei que obriga o Estado a esquecer crimes do passado que a memória dos interessados "não pode esquecer". Esse esquecimento político é frequentemente condição indispensável para a reconciliação de uma sociedade em estado de guerra contra si mesma.
Crimes de guerra -fria ou quente, limpa ou suja- podem não ser esquecidos pela memória privada dos cidadãos, podem não prescrever se assim dispuser a Constituição, mas sempre deverão poder ser anistiados se isto for condição para a paz.
Este país, sr. Sané, é hoje uma democracia, porque os que fomos vítimas de crimes políticos no passado aceitamos uma Lei de Anistia que pareceu, à grande maioria da sociedade, oferecer garantias, de parte a parte, que puseram fim à ditadura.
Fernando Henrique Cardoso, como cidadão e como cientista político, esteve entre os primeiros a compreendê-lo. A despeito do nome, a burocracia da Anistia Internacional parece fada a ficar entre os últimos.

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