São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 1995
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Impunidade e violência

MARTA SUPLICY

Talvez Pierre Sané, secretário-geral da Anistia Internacional, tenha razão quando diz que o presidente Fernando Henrique não está preocupado com os direitos humanos. Se está, a preocupação ainda não tomou forma de ação.
Num belíssimo e comovente discurso na Universidade de São Paulo, o secretário-geral da Anistia Internacional observou que frequentemente a sociedade acredita que são as organizações de solidariedade, os advogados, os familiares ou as associações como a própria Anistia Internacional que têm a responsabilidade pela proteção dos direitos humanos. Os governos seriam responsáveis apenas pela violação desses direitos. Entretanto, na legislação internacional, cabe aos governos a responsabilidade de proteger os direitos de seus cidadãos.
Na opinião da Anistia Internacional, somente o fim da impunidade cria uma base sólida para o predomínio da lei. Por isso, tanto a Anistia como a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos exigem o fim da impunidade e o julgamento de toda pessoa considerada responsável por tais abusos.
Quando crimes de violência aos direitos humanos não são investigados ou os responsáveis não respondem à lei, criam-se condições para a escalada da violência. A percepção de que as violações dos direitos humanos não serão punidas contamina todos os níveis da sociedade, gerando um clima de total desrespeito às leis vigentes.
Nesta sociedade de valores regidos pelo consumo, na qual o cidadão que não compra não tem status de cidadania, a vida do pobre ou do marginal passa a ter valor zero. A impunidade, justificada pela "maldade" e marginalidade da vítima, gera aberrações como os massacres em Vigário Geral, Candelária, Carandiru e no "lixão" de Mauá.
Como disse um policial no lixão: "Não se preocupe não, estes aí (os desaparecidos) não valem nada; tudo marginal e cheirador de crack". Na sua avaliação, aqueles jovens são o lixo e, portanto, a morte e o lixão são o seu destino natural.
Pierre Sané tem razão quando diz que no Brasil as vítimas continuam sendo aqueles que mais precisam de proteção: os pobres urbanos e rurais, os povos indígenas, os negros, os jovens e também aqueles que trabalham em prol destes -os advogados, sacerdotes, líderes camponeses.
Os perpetradores muitas vezes são agentes do Estado, cuja responsabilidade legal é a proteção dos cidadãos. Segundo investigação da Procuradoria Geral da República, dos 173 casos de assassinatos cometidos por pistoleiros no meio rural em 93, 80 deles tiveram a participação direta de policiais militares ou civis. Como querer que o povo acredite na Justiça se qualquer esperança é destruída pelas próprias pessoas cujo dever é preservá-la?
Nos últimos dez anos o país acordou para os direitos humanos. O Brasil ratificou os principais tratados internacionais e regionais sobre direitos humanos. A imprensa é livre e denuncia violações. O Judiciário tem as condições para ser, embora ainda não o seja, inteiramente independente.
Existem várias entidades dedicadas à proteção dos direitos humanos e foi criada recentemente uma Comissão Permanente de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados, sob a presidência do deputado Nilmário Miranda.
Entretanto, as violações de direitos humanos não só continuam como houve uma escalada devido à persistência da impunidade. O Brasil é um país com herança autoritária dos colonizadores em relação aos índios, dos senhores em relação aos escravos, dos homens em relação às mulheres. Nos anos 60 tivemos a eliminação de mendigos; na ditadura, a tortura e o desaparecimento de centenas de pessoas.
O fator econômico, pautado pelo ajuste estrutural, tem um peso grande no aumento da miséria e do fosso entre ricos e pobres, assim como a constante transmissão da violência pela TV com a mensagem da impunidade dos "bonzinhos" se a violência for exercida por causa nobre ou se a vítima for bandido.
Acresça-se a isso a corrupção generalizada e sem consequências e estão criadas as condições para que setores da polícia passem a agir como juiz, júri e carrasco daqueles que, quando mortos, "nada se perde".
Houve um aumento considerável de programas de rádio com a máxima "bandido bom é bandido morto". A maioria da população, seduzida pela solução fácil vociferada por esses programas, acaba acreditando que as associações de defesa dos direitos humanos são o mesmo que proteção de criminosos.
Ao contrário, criminoso tem de ser julgado e ir para a cadeia. Não deve, contudo, sob pena de nos tornarmos "terra de ninguém", ser executado sumariamente por policiais.
Faz tempo demais que gente demais aceita a morte de jovens suspeitos, desde que os mortos por engano não sejam nossos conhecidos. As políticas do medo não trazem segurança. Ao contrário, degradam e fragilizam a sociedade em que tais crimes são cometidos. E a impunidade é um dos fatores para o agravamento da política do medo.
Dos 1.200 assassinatos ocorridos no Rio desde o massacre de Vigário Geral, 80% permanecem sem solução. Os assassinos de Chico Mendes estão soltos. Só 4% dos casos de morte na área rural foram julgados. Quais as consequências? As leis, por não serem respeitadas, dão lugar à intimidação e ao apadrinhamento. Daí a importância da criação de comissões de direitos humanos e da visita/cobrança de Pierre Sané.
O Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos. O governo brasileiro é responsável não somente perante a opinião pública internacional mas, sobretudo, perante todos os brasileiros que querem ver resgatado, antes deste final de século, o direito e o respeito à cidadania.

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