São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A cafeicultura e o ectoplasma

LUIS NASSIF

O maior fantasma da cafeicultura brasileira chama-se Jorge Cárdenas, presidente da federação que congrega os cafeicultores colombianos.
Seria de sua inspiração -segundo lendas que correm o setor- todas as operações de manipulação de preços de café, de Oswaldo Aranha, avô, em 52, a Oswaldo Aranha, neto, em 95.
Há quem garanta ser exagero, visto que em 1952 o sr. Cárdenas deveria ser criança ou, no máximo, um adolescente com pipocas no rosto.
Mas os mais místicos sustentam que é isto mesmo. Como uma espécie de Merlin da cafeicultura, Cárdenas desenvolveu várias personalidades ao longo da história, algumas colombianas, outras brasileiras. É a única maneira de explicar como é possível um país com a sofisticação do Brasil, repetir o mesmo tipo de operação que, no final, prejudica a si próprio, e beneficia a Colômbia.
A burrice reiterada é tão improvável quanto a filha virginal que comunica à mãe que foi estuprada anteontem, ontem, hoje e provavelmente amanhã, à mesma hora.
Pois, então, só poderia ter sido Cárdenas que, em 1952, incorporou-se no então ministro da Fazenda Oswaldo Aranha, induzindo-o a convocar uma reunião de exportadores no Rio, para coordenar operação de sustentação do café.
Estavam lá os irmãos Jabour, Wallace Simonsen e o respeitado Marcelino Martins, com seu sobrinho Floriano Pessanha. O próprio Cárdenas, através da voz de Aranha, abriu a reunião. "Estamos com problemas com o café, com risco do preço cair. Gostaria de informar os senhores que pretendo lançar preço mínimo do café a 87 centavos. Abaixo disso, não pode mais exportar."
O sensato Marcelino Martins alertou. "Senhor ministro, gostaria de chamar a atenção que não estou de acordo. Assim como estamos vendendo a 83 centavos, podemos chegar até a um dólar e dez. Depois, o mercado vai reverter e nós vamos ficar presos a este preço mínimo. E aí, os nossos concorrentes é que irão conseguir vender."
Conforme o previsto, o preço chegou a bater em um dólar. Depois voltou para 83 centavos. Naquele ano o Brasil praticamente não exportou café. Foi um dos mais magros anos de um setor que era crucial para o equilíbrio do balanço de pagamentos, precipitando a queda de Vargas.
O desastre foi mencionado na carta-testamento como prova da conspiração internacional contra o Brasil. Mal sabia Vargas que era o ectoplasma de Cárdenas, já que naquele ano a Colômbia aproveitou-se da ausência brasileira para vender toda sua safra.
O pobre do Pessanha, única testemunha viva do episódio, conta a quem lhe pedir o que aconteceu de fato na reunião. Mas quem vai se importar com sua versão, e desmerecer documento tão pungente como a carta-testamento de Vargas?
Novas aparições
De lá para cá, o fantasma voltou a assombrar várias vezes. No governo Jânio incorporou-se em Saulo Ramos, que repetiu a operação, quebrou o setor, foi acusado em uma CPI e, mais tarde, processado e condenado a ressarcir o Banco do Brasil pelos empréstimos feitos para a operação.
Nos anos 70, por várias vezes o espírito de Cárdenas manifestou-se nos chapas-brancas que infestavam os corredores delfinistas produzindo operações "especiais" -conforme eram chamadas. Nos anos 80, retornou com força nas operações "Patrícia", do governo Sarney, e "Zélia", no governo Collor.
Agora, o ectoplasma de Cárdenas tenta incorporar-se à ministra Dorothéa Werneck, através de um cavalo de umbanda chamado Oswaldo Aranha, neto, e sua proposta de volta das quotas de exportação.
Os preços internacionais estão elevadíssimos, a produção brasileira de 95 é mínima, em função das geadas do ano passado. No plano estratégico, as quotas serviriam apenas para sedimentar o quadro atual, e impedir o Brasil de melhorar sua posição no mercado internacional no próximo ano, quando sua safra estiver recomposta.
Quem ganhará com o jogo? Obviamente o ectoplasma colombiano, justamente agora que a cafeicultura brasileira começa a acordar, a renegar paternalismo e intervencionismo, e a se virar pelas próprias pernas.
Explicações terrenas
Para quem não crê em interferências extraterrestres, nem na burrice reiterada, uma dica, digamos, mais materialista.
Em todas essas operações, ganham os grupos que participam da primeira etapa do jogo, beneficiando-se da elevação inicial das cotações, ou da conquista de cartórios de quotas.
No segundo tempo, os preços desabam ou o país perde participação no mercado internacional, em benefício de seus concorrentes. Mas aí esses grupos pulam do barco antes da materialização do prejuízo. Eventualmente, podem levar chumbo, mas apenas por erro de cálculo.
Depois, joga-se o prejuízo para a viúva ou para os cafeicultores. E bota-se a culpa na conspiração internacional e no fantasma de Cárdenas.

Texto Anterior: Venda de carro com prejuízo está isenta
Próximo Texto: GM e Toyota estudam fazer Corolla no país
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.