São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 1995
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Uma biógrafa tagarela

FLORESTAN FERNANDES

O título refere-se, sem ironia, a Jung Chang, autora de "Cisnes Selvagens" (Companhia das Letras, 1994), que esteve recentemente em São Paulo a convite da Folha. Seu objeto, como genealogista e biógrafa, consiste em descrever minuciosamente a vida de três mulheres -a avó, a mãe e ela própria- e suas peripécias nos redemoinhos provocados pela invasão japonesa, as tropas do Kuomintang, pressões norte-americanas e a revolução comunista.
A autora arrola uma rica coletânea de informações sobre a vida e as circunstâncias, por vezes dolorosas, que as três gerações enfrentaram nos vários deslocamentos pela China, determinados por ocorrências familiares ou políticas.
Pode-se dizer que ela é tagarela em sua narrativa. Mas os relatos são pungentes e desencadeiam uma reação elementar: tudo o que aconteceu é importante. O leitor, porém, fica sem critérios para separar a realidade do subjetivo.
Não há como evitar fortes emoções nos dramas encravados nas dores e alegrias da autora-personagem. Complicadas tradições de uma grande civilização sancionavam o concubinato de caudilhos e homens ricos, esmagavam a mulher e impunham a todos um código de honra complexo, atribuindo aos pobres uma condição análoga à dos párias.
Fome, miséria, violência e corrupção floresciam antes da revolução e encontraram frestas para contaminar o novo regime.
A representação básica da revolução passa por cortes, divididos entre seus estágios promissores, da Grande Marcha à implantação do comunismo e ao pós-Mao, salientando as figuras de seus líderes. O período das trevas teria início com madame Mao e a Revolução Cultural, cujo sentido histórico foi obnubilado pelos desregramentos da Guarda Vermelha. Eles explicam o ódio da autora contra Mao e a "Camarilha dos Quatro", vistos por ela como o "Bando dos Cinco".
Há um desvio do marxismo na conduta de Mao Tse-tung. Ele enredou a revolução com a tentativa de expurgo da civilização chinesa pré-capitalista. Estilhaçou-se, desse modo, a ligação orgânica entre presente e passado e, de ambos, com o futuro. O seu pensamento, na proporção em que é conhecido no Ocidente, tornou-se extremista. Na prática, aniquilou continuidades que ajudariam a manter (e não ameaçavam) os liames recíprocos entre comunismo e civilização sem barbárie.
Mao temia, talvez com razão, os riscos inerentes ao próprio regime. Faltaram-lhe, porém, estruturas e condições dinâmicas que favorecessem uma saída viável. Foi devorado por essa ambição ultra-radical, que desencadeou o contrário do que pretendia.
A autora não revelou força imaginativa suficiente para ir além do lado trágico do que deveria ser uma "aceleração arrebatadora" da revolução. Ela tem o mérito, contudo, de descrever como a Revolução Cultural abateu-se sobre os vários segmentos das populações e da administração pública.
Encerra a sua versão da história como processo no âmbito da família e das regiões em que afogou suas amarguras, realçando rápido demais as obsessões saneadoras dos que ascenderam ao poder ainda em vida ou depois da morte de Mao Tse-tung.

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