São Paulo, sexta-feira, 28 de abril de 1995
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Dez anos depois

JOSE SARNEY

José Sarney
Tancredo foi o homem que a história preparou para a transição democrática. Ele foi o político capaz de organizar uma frente de vitória, unindo da extrema direita à extrema esquerda, passando pelos radicais mais exaltados até os conciliadores mais brandos. Não fez medo aos militares e muito menos às forças civis que a ele se juntaram. Para isso, numa engenharia política que só ele sabia e levou para o túmulo, compôs um governo que juntava as correntes mais heterogêneas e inconciliáveis.
Mas havia em Tancredo um homem que sabia tudo da arte da política, conhecia os homens, a política brasileira, tinha uma longa experiência que vinha dos ocasos de sangue de Varas e Jango, da chefia do governo parlamentarista e dos comandos dos partidos de oposição, quando as instituições entraram em colapso. Ele sabia que era necessária uma transição que não dividisse o país, não o mergulhasse num grande trauma e quem sabe num retrocesso. Daí, o seu espírito de conciliação não se limitava às pessoas, era mais amplo, mais consistente, mais ambicioso. Tancredo julgava que era necessário unir o país em torno de alguns princípios básicos e, sobretudo, na fidelidade ao processo de volta à democracia.
Com a sua morte, tive de comandar esse processo. Mantive os seus objetivos básicos e enfrentei obstáculos que ele jamais enfrentaria. O ministério e o governo não eram meus, não me tinham fidelidade e compromisso. Por outro lado, as forças que formavam a Aliança Democrática não me aceitavam, porque fui vice-presidente para viabilizar a vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral, mas tinha a marca de um egresso do PDS. Minha primeira tarefa, árdua, paciente e persistente foi a de legitimar-me, na confiança dada a todos os nossos aliados de que iria cumprir fielmente os compromissos de Tancredo, e os cumpri. Logo no início legalizei, num gesto de audácia, os partidos clandestinos, e não só fiz isso como acabei com a segregação ideológica em que viviam os seus adeptos, convidando-os para, no mesmo nível dos outros partidos, discutirem com o presidente as políticas públicas. Restauramos as eleições diretas para as capitais e levantamos todas as punições sindicais, permitindo a formação de centrais de trabalhadores e dando liberdade total à organização sindical. Procuramos marchar para encontrar um caminho heterodoxo para a economia, libertando-a das fórmulas clássicas da recessão. Veio o Plano Cruzado. Convoquei a Constituinte.
As mudanças se processaram rápidas, e poucos tomaram conhecimento delas. E aqueles que as promoveram sabiam o que estavam fazendo. O Brasil criou uma sociedade democrática. Mudaram as relações empregado-patrão, mudaram todas as relações entre a sociedade civil e o Estado. Milhares e milhares de associações foram criadas, em todas elas com um certo poder político agregado. A sociedade organizou-se. As decisões de governo deixaram de ser exercício iluminado das elites.
Diz-se que no império não existia povo. Que na república, nascida sem povo, este começou a surgir aos poucos. Mas foi na Nova República que surgiu o cidadão, o exercício da cidadania, todos livres, donos de direitos e deveres que podem ser exercidos sem medo, tudo isso dentro de um clima, talvez, o maior do mundo, de liberdade de imprensa, de opinião e de organização.

José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.

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