São Paulo, sábado, 29 de abril de 1995
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A síndrome de Vanderbilt

FRANCISCO LUIZ SIBUT GOMIDE

A privatização do setor elétrico, embora bem-vinda, está longe de ser a solução mágica para todos os nossos problemas. Não é a natureza do capital -estatal ou privado- que assegura ou não o suprimento, a qualidade de serviços e os preços adequados de energia elétrica.
O que assegura esse conjunto de necessidades é a competência técnica, a força administrativa e a independência política do ambiente regulatório estabelecido pelo poder concedente. Este é que é o instrumento para o Estado ser forte, no sentido de cumprir efetivamente suas tarefas constitucionais.
Se uma adequada cultura regulatória não for rapidamente desenvolvida, corre-se o risco de se estar simplesmente concentrando em novo agente do poder concedente as deficiências que foram -deliberadamente ou não- plantadas nas empresas estatais nos últimos anos.
Pobres empresas estatais! O que se pode esperar de empresas que foram desrespeitadas pelos quatro principais protagonistas do seu universo -o cliente, o acionista, o empregado e o legislador? Os maiores clientes do setor elétrico desrespeitaram sistematicamente as empresas, criando "lobbies" de contenção tarifária que abalaram o seu equilíbrio econômico-financeiro.
O Estado, como principal acionista, desrespeitou-as ao praticar essa contenção tarifária, se não por pressão de "lobbies", no mínimo como instrumento de política equivocada de controle da inflação. Os empregados? Parcela significativa deles confundiu o "esprit de corps" -saudável e necessário em qualquer organização- com a sua corruptela, o corporativismo. E tudo aconteceu por falta de cultura regulatória adequada.
O mais grave, porém, foi que o legislador, fortemente auxiliado pelo principal acionista das estatais, não compreendeu que, ao constituir empresas, o Estado "privatizou-se". A idéia inicial era aumentar a eficiência do Estado utilizando-se das vantagens de uma estrutura de direito privado. É imperdoável que se tenha criado um cipoal de legislação e mecanismos de controle que tolhem a atuação das estatais eficientes, transformando-as -sem distingui-las das ineficientes- em repartições públicas e levando-as a perder, assim, sua razão de ser!
Quanto ao capital privado, por mais que sua concepção tenha evoluído ultimamente, desenvolvendo -na maior parte de empresas relevantes- profunda consciência de sua responsabilidade social e respeito pelo cliente, ainda há quem lembre da desastrada entrevista de W. H. Vanderbilt, herdeiro da famosa ferrovia norte-americana.
Há mais de cem anos atrás, perguntaram-lhe se sua empresa era dirigida com vistas ao interesse público. Naturalmente, ele a dirigia com vistas ao interesse do acionista, mas os jornais de costa a costa noticiaram, deliciados, a singela resposta: "O público que se dane!"
Felizmente, apesar da falta de vocação do capital privado para preocupar-se com o interesse público, os americanos foram bem-sucedidos no combate à síndrome de Vanderbilt, com doses precisas de regulamentação correta.
Como não é possível privatizar todo o setor elétrico, certamente o futuro terá de ser caracterizado pelo convívio produtivo entre capitais públicos e privados. Para garantir a livre concorrência na produção e no consumo, e ao mesmo tempo combater a síndrome de Vanderbilt e disciplinar a atuação das estatais eficazes remanescentes, há que se criar o adequado ambiente regulatório.

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