São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Grupo defende que 'negro' é termo de caráter político

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 02/05/95
O jornalista Fernando Conceição não é coordenador do Movimento Negro Unificado, como informava a legenda à pág. 1-4 de ontem, mas coordenador executivo do Núcleo de Consciência Negra na Universidade de São Paulo e do Movimento Nacional pelas Reparações, como informava corretamente o texto de apresentação da entrevista.
Grupo defende que 'negro' é termo de caráter político
O chamado movimento negro brasileiro é um grupo de cerca de 800 organizações, conforme a última contagem -feita em 1988, por uma instituição carioca- e segundo informa o Núcleo de Consciência Negra (NCN) na Universidade de São Paulo (USP). A USP não tem ligação oficial com o núcleo, apenas empresta uma sala, que foi ocupada por alunos negros componentes do grupo em 1988. O discurso do movimento negro se reproduz aqui na fala de Fernando Conceição, um dos coordenadores do NCN.
Marcado por uma tendência separatista, o movimento tem algo do amadorismo dos movimentos estudantis, onde em parte nasceu, mas está longe de ter a mesma força. Defende a criação de uma sociedade negra, e não a ``simples inclusão dos negros na ideologia europeizante. O negro já tentou de diversas formas se integrar na sociedade dominada pela elite branca, e todas as experiências foram frustrantes".
Parte de pressupostos radicais, importados dos EUA ou da África, dificilmente aplicáveis à realidade brasileira.
O NCN e Conceição falam em congresso pan-africanista e tratam o Brasil como se aqui fosse a Nigéria ou o Congo. Negam a existência científica do conceito de raça mas combatem o que até hoje vem sendo chamado de ``discriminação racial" no mundo todo.
Dividem as pessoas em negras e brancas e só aceitam a definição de mestiçagem se o mestiço de negro com branco for chamado de ``negro-mestiço" (e não simplesmente mestiço, moreno, mulato ou, quiçá, branco-mestiço) nos sensos oficiais e na mídia.
Por outro lado, afirmam que a idéia de raça só existe para uso político das elites dominantes interessadas em discriminar os negros e seus descendentes.
O NCN é o idealizador do Movimento pelas Reparações, que pretende criar projeto de lei que indenize cada brasileiro descendente de escravo negro com uma quantia de US$ 102 mil.
Conceição lamenta que o movimento negro não tenha ainda conseguido se organizar em escala nacional -afinal, não deve ser fácil marcar uma reunião de que participem 800 indivíduos.

Folha - O que é o movimento negro brasileiro?
Fernando Conceição - É um conjunto de entidades formais e não formais, de intelectuais e pessoas que lutam de forma integrada no combate à discriminação racial.
Folha - Quais entidades?
Conceição - Há desde igrejas, o pessoal ligado às religiões de tradição afro e às pastorais de negros da igreja católica, até entidades políticas, como é o caso do Movimento Negro Unificado (MNU) e entidades acadêmicas como o NCN na USP. A coordenação do movimento é colegiada.
Folha - Com que frequência essas entidades se reúnem? Elas seguem a mesma ideologia e conduta de trabalho?
Conceição - A filosofia única é o combate ao racismo. Existem mil divergências quanto à forma e à metodologia utilizada. Há alguns encontros nacionais ou regionais para a gente traçar planos e metas. Este ano, teremos dois de entidades negras de comunidades rurais. Além disso, as entidades nacionais pretendem organizar até novembro um encontro nacional.
Folha - O movimento sabe quantos negros há no Brasil?
Conceição - ``Negro", no nosso entendimento, é uma denominação de caráter político, não racial. Nesse aspecto, segundo os dados do IBGE, seríamos em torno de 45% da população, incluindo o que eles chamam de pretos e pardos, ou mestiços.
Folha - Por que ``negro" é uma classificação política?
Conceição - Porque raça é um conceito furado, em termos biológicos, em termos genéticos, não existe. Segundo os próprios biólogos e geneticistas existe apenas a raça humana, não raça em termos de definição, digamos, étnica.
Os últimos estudos, por exemplo, do projeto Genoma tentam demonstrar que existem mais diferenças entre duas pessoas de mesmos ancestrais africanos que entre uma delas e um ariano.
Folha - Se raça é um conceito ``furado", por que o movimento ``negro" combate a discriminação ``racial"?
Conceição - Porque a ideologia dos setores dominantes da nossa sociedade se apropriou dessa classificação para, a partir daí, discriminar os grupos oriundos dos primeiros africanos, os escravos.
Folha - Os negros?
Conceição - É, os negros e, pela classificação do IBGE, também os pardos, os mestiços de negros. Para o IBGE, os negros são apenas 7% da população.
Folha - Mas você disse antes que somos, segundo o IBGE, 45% entre negros e mestiços.
Conceição - Segundo o IBGE, os pretos são apenas 7%. Essa é uma classificação política, que responde ao interesse de negar o problema da discriminação racial.
Folha - Vocês consideram os mestiços como negros?
Conceição - Sim, os mestiços de negros. O negro-mestiço.
Folha - Existe alguma pesquisa mostrando que os mestiços se acham negros?
Conceição - Não. Não sei. Eu não quero obrigar aqui o mestiço a se considerar negro. O movimento tem uma posição política de mostrar resistência e dar visibilidade ao negro afirmando a identidade negra, mas seria um absurdo nós forçarmos alguém a se considerar negro. É um problema de opção, de consciência.
Folha - De onde surgiu o movimento pelas reparações? Conceição - De um congresso de universitários negros, em 93, na Bahia, onde havia cerca de mil pessoas. O movimento pelas reparações quer que o Estado brasileiro indenize cada descendente de escravo africano negro pelo trabalho gratuito de nossos ancestrais.
Folha - Quem são os descendentes de africanos?
Conceição - Todos os negros e mestiços do país.
Folha - Então você está classificando as pessoas por raça.
Conceição - É, apenas para efeito de explicitação do problema. Não fomos nós que nos atribuímos uma definição racial, ela nos foi imposta.
Folha - Mas quem será suficientemente negro para ser indenizado? Conceição - Não somos nós que vamos dar critérios. Os descendentes é que se habilitem, que se apresentem. Se uma pessoa branca se apresentar, compete ao Estado provar que ela não é descendente de africano. Porque não existe no Brasil nenhuma documentação capaz de provar que eu ou um branco somos descendentes de africanos.
Folha - Esse movimento não corre o risco de virar uma piada nacional?
Conceição - Não. O movimento só tem crescido, desde janeiro. Tem comitês em vários estados do Brasil, encarregados de coletar assinaturas. Nós precisamos de um milhão de assinaturas até novembro, para o projeto de lei.

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