São Paulo, quarta-feira, 3 de maio de 1995
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Kitsch comove em 'Minha Amada Imortal'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Kitsch comove em `Minha Amada Imortal'
O filme sobre a vida de Beethoven ultrapassa os limites do melodrama pela intensidade dos sentimentos e da música
Há coisa de duas semanas, eu estava almoçando num restaurante quando entraram três mulheres usando roupas do século passado, com cestinhos de flores na mão, distribuindo folhetos. Pensei que fosse o lançamento de um novo prédio de apartamentos.
Não era. As três moças faziam propaganda de ``Minha Amada Imortal", filme de Bernard Rose que conta os amores de Ludwig van Beethoven. Estava-se investindo pesado no ``romantismo". Depois, vi o trailer. A coisa era de assustar. Beethoven aparece tocando piano -mas, sendo surdo, tem de encostar a cabeça no tampo do instrumento para tentar ouvir alguma coisa. Seguem-se tempestades; acessos de fúria; invasões napoleônicas; amores infelizes.
Talvez seja impossível fazer um bom filme sobre Beethoven. A surdez do grande compositor é uma dessas ironias do destino que, de tão pesadas, de tão violentas, tornam de mau gosto qualquer comentário. Dramatizar no cinema essa azar monumental é levar a explicitude longe demais.
Outro problema, que atinge todo filme sobre grandes personagens históricos, é o que fazer com o ator encarregado de interpretá-los. Forçosamente, o público espera uma semelhança física do ator com os retratos e as poses clássicas do personagem real.
Napoleão tem de parecer Napoleão, com a mão direita escondida na aba do casaco; Beethoven terá sempre de aparecer com os cabelos desarrumados e o cenho franzido. Mais: tem de ser um gênio furioso, e cada momento do filme precisa significar genialidade e fúria, ou não será convincente.
Some-se a isso um roteiro romanceado, com desentendimentos amorosos, desencontros e infelicidades capazes de dar vergonha a um autor de telenovela, e tudo faz de ``Minha Amada Imortal" um previsibilíssimo desastre.
Bom, era este o artigo que eu pretendia escrever, e que poderia ter escrito mesmo sem ver o filme. Só que... só que ``Minha Amada Imortal" me desarmou bastante. Que diabo. Comove muito. Talvez porque não tenha medo dos próprios defeitos.
Nada pior, na verdade, do que uma apelação disfarçada, desonesta, ou uma intensificação forçada de sentimentos. Aqui, os sentimentos são tão fortes, e a música de Beethoven ajuda tanto, que é como se o filme ultrapassasse os limites do melodrama: há cenas em que o kitsch supera a si mesmo e vence as resistências que possamos ter.
Aos 12 anos, Beethoven faz fiasco num concerto; é espancado pelo pai bêbado, que explora seu talento; foge de casa, à noite. Corre descalço por um bosque, vai dar num lago. O lago reflete um céu de planetário. O menino se joga no lago, a câmera vai se distanciando, o fundo musical é a ``Nona Sinfonia", e o espectador se vê diante de uma cena espantosa: o pequeno Beethoven, flutuando na água estrelada, como que entra em órbita! Vira um astro no firmamento! E dá-lhe ``Nona Sinfonia".
É vergonhoso comover-se com uma coisa dessas, mas também é difícil resistir. O inusitado da concepção, o exagero do kitsch, o absurdo cosmonáutico nos pegam desprevenidos.
E uma coisa é saber que, por uma crueldade do destino, Beethoven ficou surdo. Outra é assistir, no filme, às circunstâncias, às experiências concretas, à figuração explícita do sofrimento do compositor. A interpretação de Gary Oldman e os truques da trilha sonora atingem em cheio o efeito que pretendiam.
``Minha Amada Imortal" está abaixo de qualquer juízo estético. Tem uma veemência quase bárbara, uma rotundidade, uma falta de senso do ridículo que o absolvem de ser ruim.
``Farinelli, Il Castrato", de Gérard Corbiau, não chega a tanto. Temos, aqui também, música clássica no cinema -o que é sinônimo de ``emoções em fúria"; assistimos a um drama parecido -o talento excepcional tendo de pagar ao Destino seu pesado preço de infelicidade-; e, como no filme sobre Beethoven, há tormentas, vidraças quebradas, acessos de ira, incompreensões, homenagens ao Poder da Música, carruagens desembestadas, apoplexias, excessos, desmaios.
Mas ``Farinelli" é mais estiloso, mais nuançado, não tão óbvio; paradoxalmente, isto nos faz mais sensíveis e críticos ao que tem de ruim e caricato.
Nos dois filmes há, é claro, cenas de concerto. Sustentando por tempo interminável uma nota agudíssima, o cantor Farinelli -espécie de ``megastar" da ópera do século 18- provoca desmaios nas moças da aristocracia; mesmo o severo, antipático compositor Haendel, ouvindo um de seus recitais, acaba passando mal e é socorrido.
Em ``Minha Amada Imortal", a música de Beethoven se revela extremamente perturbadora -emoções fortes demais, capazes de despertar impulsos apaixonados e pecaminosos na platéia.
Talvez o que esteja em jogo, nestes filmes, seja precisamente a nostalgia por um público impressionável, mais desarmado e menos crítico do que o atual. O cinema de Spielberg sabe manipular, com brilho e eficácia, as emoções da platéia. Mas ao preço de um refinamento tecnológico, de uma inteligência, de um cuidado milimétrico com os detalhes.
``Minha Amada Imortal" aposta na overdose emotiva, que é ironizada em ``Farinelli". Em sua direta ingenuidade, não é impossível que consiga nos deixar um pouco ingênuos também.

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