São Paulo, quarta-feira, 3 de maio de 1995
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Da arte de fingir

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Deus e o poeta José Lino Grunewald são testemunhas do meu amor por Fernando Pessoa -poderia invocar o testemunho de outro poeta, o Mário Faustino que, em noite memorável, ensinou-nos como se devia ler e sentir o poeta das horas.
Apesar disso, pela segunda vez em pouco tempo, sou obrigado a jogar areia na engrenagem de sua glória. O citadíssimo ``navegar é preciso" que atribuem a Pessoa não é dele, e sim de um general romano -já contei essa história neste mesmo espaço.
Vou repetir a dose, agora no verso -o mais citado por sinal- de Pessoa. Aquele ``o poeta é um fingidor" é uma citação de ``o artista é um fingidor", ou seja, não é apenas o poeta que finge, qualquer homem quando ultrapassa o limite do contingente mental e penetra no sombrio átrio da criação está fingindo, na pior hipótese, que ele não é ele, é mais alguma coisa.
Já citei, há tempos, o livro de Michel Crouzet, ``Stendhal ou Monsieur Moi-Même" (edição Flammarion, 1990). Entre as muitas biografias do autor de ``O Vermelho e o Negro", essa é que aborda explicitamente o truque existencial e artístico que fez de um banal Henri Beyle, mentiroso profissional, quase um charlatão, o mais extraordinário romancista de uma França cheia de romancistas extraordinários.
É um desafio para os pesquisadores. Seu encontro com Byron, na Ópera, foi tão maravilhoso que Byron escreveu a vários amigos comunicando que havia conhecido o secretário pessoal e confidente de Napoleão. Stendhal viu o imperador uma única vez, quando, na qualidade de amanuense de um general, levou-lhe um papel do expediente burocrático e com ele não ficou nem meio minuto.
Isso no plano material, físico. Lá por dentro, Henri Beyle escreveu o próprio epitáfio, fazendo-se passar por ``Arrigo Beyle, milanese, Visse, Scrisse, Amo", assim mesmo, em italiano, declarando que viveu, escreveu e amou. Levou para o túmulo o mistério de sua vida e de sua obra, admitindo apenas o que jamais conseguiu fingir: amou.

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