São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 1995
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"A reação que a hora nos impõe é a necessária"

Esta é a íntegra do discurso de posse de Sepúlveda Pertence na presidência do Supremo Tribunal Federal.

Recebo, com particular satisfação, a presidência do Supremo Tribunal Federal das mãos honradas do eminente ministro Luiz Octavio Gallotti -amigo desde os primeiros tempos da Brasília nascente: o melhor preito de gratidão que, em nome da Casa, lhe devo testemunhar, é pedir ao destino que me empreste, nos momentos difíceis do biênio que me caberá, um pouco que seja do equilíbrio sem temores, da tolerância sem perda da autoridade, da altivez sem arrogância com que S. Exa. atravessou e venceu os muitos percalços que lhe foram reservados.
O alto posto de presidente da Suprema Corte -notou o grande Aliomar Baleeiro, ao investir-se nele- é honraria que não suscita emulações, ``porque os antigos precedentes o conferem, em geral, aos privilégios melancólicos da idade e da antiguidade no ofício".
Assumo a presidência do tribunal cônscio dos deveres e responsabilidade do cargo e de suas mais nobres tradições. Confortado, porém, de saber que a escolha -embora rotineiro o seu critério- sói trazer para o eleito o compromisso do aconselhamento, da colaboração e da solidariedade de todos os seus pares, incluídos entre eles, para maior tranquilidade minha, quatro dos ex-titulares do cargo, cuja experiência me será de extrema valia.
Gratifica-me muito especialmente poder contar, na vice-presidência, com o eminente ministro Celso de Mello, de cujas raras qualidades morais e intelectuais pretendo receber a cooperação indispensável à tarefa que juntos temos a cumprir.
Em meu nome e no nome de minha mulher, Suely Castello Branco Pertence -companheira atuante e solidária nas procelas e vitórias de uma vida inteira-, assim como no do ministro Celso de Mello, agradeço. Comovido à generosidade dos oradores desta sessão: o eminente ministro Carlos Mário Velloso -velho amigo desde os tempos distantes, mas inolvidáveis, do Colégio Estadual de Minas, que tenho reencontrado com imensa alegria nas sucessivas esquinas da vida-, o douto procurador-geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga, que me ajudou a sonhar o novo Ministério Público, que lhe coube concretizar com dignidade e proficiência exemplares -e o caro e ilustre dr. Ernando Uchôa Lima, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil- em cujas tribunas gloriosas pude dar voz à minha rebeldia contra o silêncio que se impunha à nação.
Vivo uma hora de profundas emoções.
Essa Casa e esta sala -com a austeridade imponente que lhe soube moldar o gênio de Niemeyer- constituíram o cenário mais frequente de minha vida profissional, desde quando, tímido e recém-formado, ousei tornar-me frequentador da sua tribuna de advogados.
Tudo quanto aqui vivi -lá se vão mais de três décadas- de alegrias, angústias e até decepções acabou por sedimentar, no mais íntimo de mim mesmo, um amor pela instituição, ungido de veneração sincera.
Por tudo, é comovente e atemorizante, mas também envaidecedor -não seria sincero escondê-lo-, este momento em que vejo o meu nome incorporar-se à galeria dos que a presidiram, digna de somar-se à dos homens que mais engrandeceram o serviço da República.
Para personalizar a honra devida a esse conjunto raro de varões exemplares, seria até possível confiar à sorte a eleição de qualquer um deles; ou, como forma de recordar a inesquecível Sabará, nossa terra comum, situar a homenagem em Orozimbo Nonato, um dos mais sábios dentre todos, justificado orgulho dos conterrâneos comuns.
Escusem-me, no entanto, por motivos bem-sabidos, a liberdade de uma escolha heterodoxa: a de celebrar a memória dos antigos presidentes da Casa com a lembrança de alguém que não o pôde ser.
Um dos maiores juízes da história da Corte, Victor Nunes Leal -cujos dez anos de morte, precisamente hoje, os amigos rememoramos com saudade ainda doída-, principal formulador e executor incansável do esforço sem precedentes de modernização do tribunal, nos anos 60, foi colhido pela prepotência arrogante do poder arbitrário, quando mal assumira a vice-presidência; e a violência da sua aposentadoria frustrou o quanto de esperanças gerava, ao tempo, a sua ascensão antevista à chefia do Poder Judiciário, comprometida com a efetividade e a democratização das garantias jurisdicionais.
Juntamente com Victor Nunes Leal, os desvarios do autoritarismo igualmente subtraíram da Corte -na mais insólita das agressões de sua história- dois outros dos seus maiores, que não posso deixar de nomear neste momento, em testemunho de respeito e desagravo históricos: o saudoso, culto e suave Hermes Lima e o meu mestre e amigo Evandro Lins e Silva, este, felizmente entre nós, na plenitude, sempre lúcida, brava e combativa, da maturidade dos seus 83 anos.
Minha caminhada pela vida não tem sido pavimentada de facilidades.
Certo, alçaram-me as Parcas a altiplanos imprevistos; sequer sonháveis na maior parte da vida adulta, em que mutilada a minha cidadania.
Quase sempre, porém, os tenho atingido em horas difíceis para cada uma das honrosas missões recebidas.
Não me surpreende, pois, que o mesmo suceda agora.
Recebo esta presidência quando o Supremo Tribunal Federal e todo o Poder Judiciário nacional são alvos de uma inédita confluência de críticas de toda a sorte, quando não de agressões; espontâneas umas, conjuradas outras; emocionais algumas, ardilosamente calculadas outras tantas...
Claro, é preciso reagir. E sem tardança.
Não, porém, com os excessos da susceptibilidade dos que se pretendem intocáveis, que, na vida pública, a democracia aborrece, e constituem apenas uma forma a mais de autoritarismo.
A reação que a hora nos impõe é a necessária a que o momentâneo desprestígio da Justiça não se transmude em descrença na instituição judiciária e no seu papel insubstituível na construção do Estado democrático de Direito.
Não se trata de deixar sem repulsa a agressão grosseira -ou o recurso leviano, mas frequente, à generalização indevida de comportamentos reprováveis de uns tantos-, e que ofendam a respeitabilidade de todo o Poder Judiciário, o qual -até por imperativos da sua função-, na generalidade dos homens e mulheres que o encarnam, não é menos despojado, o menos discreto nem menos austero do que possamos pretender ser os demais poderes do Estado.
Aí, sem descer ao nível dos agressores, a resposta será pronta. E vigorosa, sempre que preciso: menos para retribuir o insulto do que para esclarecer os mal-informados a que não se deixem iludir e manipular.
Deixo claro, no entanto, que, em meio à multiplicidade dos alvos atingidos, à diversidade de conteúdo e à variedade de formas das críticas ao Judiciário que se avolumam, o que mais me interessa decididamente não é descobrir suas inspirações e objetivas, nem formular juízos de valor a respeito: de fato -exceto como observador curioso das coisas e dos homens de nossa vida pública- pouco se me dá saber de onde parte e a que interesses pretende efetivamente servir cada um dos ataques.
Presidente do Supremo Tribunal Federal, o que verdadeiramente me preocupa, em primeiro lugar, é a consciência, vinda de longe, da exatidão objetiva de muitos dos seríssimos vícios atribuídos à prestação dos serviços judiciários no país. Eles vão da indigência e da má-distribuição dos recursos humanos e materiais disponíveis à crescente lentidão das decisões, que se somam à carestia do processo e ao obsoletismo das formas processuais, tudo a concorrer afinal, decisivamente, para a ineficácia e o resultado frequentemente iníquo e socialmente discriminatório da ação da Justiça no Brasil.
É certo que essas verdades não são de hoje e que, para os profissionais do fórum, são evidências que muitos já assimilaram como irremediáveis.
De minha parte, não sou de conformar-me com mazelas e injustiças, apenas porque sejam velhas.
De resto, há algo de novo, que, embora acabrunhante para nós, é historicamente positivo: a expansão social da consciência popular das deficiências da Justiça e a exigência cada vez maior de sua superação.
O fenômeno parece refletir, de um lado, a saudável reação de uma cidadania cada vez menos dócil à persistência dos mais cruéis indicadores da iniquidade de nossa ordem social; neles se incluem, em posição de relevo, os obstáculos de toda sorte ao acesso do homem sem privilégios à jurisdição, salvo para compor a clientela de preferência da repressão penal ou da garantia dos créditos da agiotagem voraz.
Esse novo e saudável reclamo do direito efetivo à jurisdição, que parte agora dos setores sociais mais amplos e explorados, e redunda no decréscimo acelerado da taxa de confiabilidade dos organismos que o homem da rua denomina ``a Justiça"-, deve também ser creditado, ainda que se afigure paradoxal, a um dos aspectos institucionais mais positivos da Constituição de 1998: o aprofundamento e a atualização nela dos melhores traços do ``judiciarismo" de nossa tradição republicana.
Desconheço outro texto constitucional -sejam os que a precederam, no Brasil, sejam os do direito comparado- que haja confiado, mais que a Constituição de 88, na solução judicial dos conflitos individuais e coletivos de toda ordem e aberto formalmente com tanta generosidade as vias de acesso à jurisdição aos cidadãos, às formações sociais intermediárias e ao Ministério Público, como instrumento de toda a sociedade.
Tudo isso -somado aos ares de reconquista da convivência democrática- traduziu-se, num primeiro momento, na descoberta do Judiciário, arena insuspeitada de afirmação da cidadania. E se refletiu então no prestígio da Justiça.
Sucede que o agitamento da procura pela sociedade dos órgãos jurisdicionais de todos os graus, incentivada pela Constituição, cedo encontrariam a frustração inevitável resultante da manifesta incapacidade da máquina judiciária, já obsoleta em face das solicitações tradicionais, para atender às demandas inéditas e diversificadas destes tempos de democratização. Fenômeno agravado até o desespero pela ausência de mecanismos adequados para a solução racional das causas sobre questões idênticas, que a cada ano se multiplicam em centenas de milhares de processos ociosos.
Por isso, o descrédito da Justiça, revelado nas pesquisas de hoje, traduz, em grande parte, o refluxo daquelas mesmas esperanças, até agora frustradas, que, ontem, as estatísticas também documentaram.
Tudo isso -é preciso assumi-lo- são realidades inegáveis, que não admito, porém, sejam invencíveis.
Claro, seria leviano atribuir toda a responsabilidade por elas à própria magistratura: pende, grande parte, dos problemas fundamentais do Judiciário da decisão dos poderes políticos, particularmente, de medidas legislativas imprescindíveis e urgentes.
É um exemplo marcante a lei que discipline os juizados especiais -uma das alternativas mais alvissareiras da Constituição ao congestionamento, ao custo e à lentidão das estruturas judiciais ordinárias.
Outro, é o projeto do Estatuto da Magistratura, submetido pelo Supremo Tribunal ao Congresso e cuja aprovação instituiria o Conselho Nacional de Administração da Justiça, ensaio inicial -tanto quanto o possibilitou a Constituição- de um órgão central de administração superior, controle e formulação das políticas básicas de aperfeiçoamento do Judiciário.
Mas não pode o Judiciário apegar-se à eventual lentidão de outros Poderes para fugir à responsabilidade, que é sua, com a verdade dos seus defeitos e com a sua própria imagem.
Não tenho a presunção intolerável de trazer soluções prontas.
Meu papel -afora o de buscar melhorias nas condições de trabalho da própria Casa- é o de mobilizar o poder simbólico da presidência do Supremo Tribunal e provocar a reflexão crítica e aberta, sobre as soluções cabíveis para uma Justiça ao menos razoável: a que seja possível a um país que ainda não superou a humilhação e a vergonha da miséria de grande parcela do seu povo.
É preciso repensar a Justiça no Brasil, sem preconceitos nem utopias.
Só há um ponto fora da discussão possível para nós: o da independência do Poder Judiciário, da qual emergem, afora a liberdade de julgar, os atributos fundamentais do seu autogoverno, que visam a assegurá-la concretamente e só se podem sujeitar aos limites ditados pelos freios e contrapesos do regime constitucional intocável da separação dos Poderes.
A resistência da magistratura decorre aí do seu compromisso democrático.
Se é certo que onde faltar a democracia não há Justiça que mereça o nome, também é verdade que não haverá democracia verdadeira onde faltar tribunais independentes para, quando o impuserem a Constituição e as leis, contrariar as injunções da maioria política da conjuntura do dia.
Convocar para essa reflexão, necessária e inadiável, não apenas a Corte e os demais tribunais, os magistrados de todas as instâncias, os advogados e o Ministério Público, mas também, e com todos eles, os Poderes políticos e a sociedade civil, será a minha preocupação, o meu compromisso.
Que possa cumpri-lo, é a minha esperança.
Muito obrigado.

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