São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 1995
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Medicamentos e algumas falácias

JOSÉ EDUARDO BANDEIRA DE MELLO

Poucos assuntos provocam tantas polêmicas em nosso país como os medicamentos. Talvez só os alimentos sejam mais essenciais à vida humana que eles, o que explica, em parte, a paixão que provocam. Nem essa paixão, contudo, justifica as falácias que frequentam os debates sobre medicamentos.
Duas delas estão na ordem do dia. Uma que louva a eficácia das chamadas listas de medicamentos básicos, atribuindo a elas o poder mágico de curar todas as doenças existentes num país; outra que está atribuindo ao famoso decreto 793, que pretensamente institui os medicamentos genéricos no Brasil, o poder, também mágico, de garantir acesso da população a remédios baratos. Eis aí duas afirmativas sobre as quais cai como uma luva o velho provérbio popular: nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
Quanto às listas de medicamentos básicos, é amplamente sabido que a Organização Mundial de Saúde recomenda a sua adoção pelos sistemas públicos de saúde. Pois bem, o Brasil já tem a sua, conhecida como Relação Nacional de Medicamentos -Rename- na qual constam cerca de 300 produtos. Assume-se que esses 300 medicamentos podem atender o perfil epidemiológico do país. Mas assume-se, também, que de 5% a 10% das enfermidades que ocorrem no país escaparam da abrangência desses produtos.
Ora, os pacientes cujas doenças se enquadram nessas exceções têm o direito de ter acesso a medicamentos que os curem. Em função disso, os sistemas de saúde de todos os países, sejam pobres, em desenvolvimento ou ricos, não impedem o lançamento de novos medicamentos, além dos já constantes nas listas básicas.
É preciso lembrar, também, como surgem as listas básicas. Elas são constituídas por aqueles medicamentos que foram tão reiteradas vezes receitados e aceitos como eficazes e seguros pela classe médica que se tornaram essenciais. Só depois, portanto, de estarem há longo tempo no mercado esses medicamentos acabam sendo selecionados pelos especialistas para integrar as listas básicas nacionais.
Não se deve esquecer que os receituários gerados pelos médicos nascem das visitas que os representantes dos laboratórios lhes fazem para divulgar os seus produtos, de trabalhos científicos, das jornadas médicas, dos congressos, da intensa divulgação que as empresas farmacêuticas fazem de suas descobertas. Não faz sentido, portanto, criticar esse processo de divulgação junto aos médicos, sob o pretexto de que a existência das listas básicas o torna desnecessário. No parágrafo anterior, mostramos que uma coisa não existe sem a outra.
Passemos ao famoso decreto 793, que, como já foi dito, pretensamente introduz os medicamentos genéricos no país. Como se sabe, ele obrigaria os laboratórios brasileiros a vender seus medicamentos sob o nome genérico, sendo que a marca comercial apareceria na embalagem com um tamanho um terço menor do que aquele. Em outras palavras, considerando-se as diminutas dimensões das embalagens, a marca comercial praticamente desapareceria.
Ao relegar a marca comercial a uma expressão insignificante, o decreto 793, contraditoriamente, condena o futuro dos genéricos no Brasil, pois desestimula os laboratórios que fazem pesquisa a introduzir no mercado brasileiro as inovações por eles descobertas. É irrealista imaginar que uma empresa vá investir milhões de dólares para descobrir uma substância química terapêutica eficaz e segura para depois colocá-la no mercado, sob denominação química, sujeita a substituição no receituário por produto copiado por empresas concorrentes que não investem em pesquisa.
Não há outro meio de estimular a pesquisa senão permitir que o laboratório descobridor de um medicamento use a sua marca comercial, para distinguir o seu produto e obter assim o lucro ou a remuneração necessária para realimentar seu ciclo de investigações científicas. Ora, se não forem introduzidos novos produtos de marca comercial no mercado brasileiro, não haverá, no futuro, produtos originais para serem copiados. Desaparecerão, assim, as perspectivas de surgimento de novos genéricos.
Isto posto, é preciso ainda que três pontos fiquem claros em relação ao decreto 793:
- a única razão pela qual o genérico pode ser vendido mais barato deve-se ao fato de o seu preço não incorporar qualquer custo de pesquisa, lançamento e divulgação no mercado, pois todos esses gastos estão embutidos no preço do produto de marca;
- o genérico que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde e está em uso crescente nos países do Primeiro Mundo não entra em conflito com os produtos de marca comercial, com os quais convive sem qualquer restrição comparativa;
- os países do Primeiro Mundo exigem a prova de que o genérico é bioequivalente ao produto de marca do qual é cópia, isto é, de que produz no corpo humano os mesmos efeitos terapêuticos do original.
É oportuno, também, corrigir uma informação que circula com grande desenvoltura na praça, mas não tem qualquer fundamento: não há 40 mil medicamentos no mercado brasileiro. Há 4.850 produtos, em 8.300 apresentações (xarope, cápsulas, drágeas, supositórios, injetáveis etc...). Este número é facilmente comprovável por intermédio de uma consulta aos cadernos de preços editados pelas entidades de classe do comércio farmacêutico.
Por fim, é bom lembrar que, em se tratando de ciências não exatas, não existe verdade absoluta. É saudável que existam diferentes correntes de opinião, mesmo que contraditórias, pois do seu embate nascem as avaliações mais corretas, mais adequadas. Proclamar verdades tonitruantes sobre a questão dos medicamentos é demonstração de desconhecimento ou de autoritarismo.

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