São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 1995
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Celebridades

OTAVIO FRIAS FILHO

A moda das biografias é quase um transtorno. Acostumados basicamente à leitura de outdoors, somos compelidos pela fiscalização de amigos e pela insistência da imprensa a encarar um desses oceanos biográficos. Mas no meio da tarefa já lançaram outro, ainda mais imperdível que o anterior.
Chega um ponto em que não sabemos mais se a amante argentina era de Nelson Rodrigues ou de Chatô, se foi Mauá ou Roberto Campos o autor de ``Exposição aos Credores". O que fica nítido na memória são instantes ainda mais minúsculos, como restos do naufrágio que toda vida é.
Não que as biografias sejam inúteis. Estas, da última safra, são aliás excelentes, além da vantagem de iluminarem períodos turvados pelo que mal-aprendemos na escola. E quanto mais longas, mais são lidas, confirmando a intuição de que livro bom é o livro enorme, interminável.
Um dos prazeres da leitura, no entanto, é abandonar um livro pela metade. Na nossa época de analfabetização em massa, essa tentação é um risco iminente contra o qual o autor tem de se defender a cada página, a cada parágrafo.
O resultado é que as vidas se roteirizam, cheias de incidentes rocambolescos, diálogos picantes, suspense e aventura. Os autores reconstituem detalhes e conversas íntimas que aconteceram há 50 anos; os personagens tropeçam com a história na esquina. São livros que já nascem filmes.
Carla Camurati não pretende filmar ``A Lanterna na Popa", nem a Globo, espero, vai lançar a minissérie ``Mauá". Mas os biógrafos deveriam ser homenageados como heróis da resistência literária e os best-sellers como as últimas trincheiras de uma guerra vencida pela civilização visual.
Porque a mania das biografias é apenas manifestação escrita, residual, de um fenômeno mais amplo, o narcisismo irrefreável e galopante que assola o mundo. Quanto mais livres para sermos nós mesmos, mais precisamos de modelos; quanto mais alternativas diante de nós, mais estreito é o futuro.
O fim dos interditos sexuais abre novas perspectivas para o tititi das biografias; pesquisas em cabeleireiros mostram que há manicures e patroas em número suficiente para justificar a existência de revistas que são pasto biográfico para os iletrados.
Tanto o leitor de Roberto Campos quanto a aficionada pela revista de fofocas conhecem detalhes da vida de Madonna. A curiosidade em torno da biografia dos que parecem ter uma vida que vale ser vivida torna-se obsessão universal.
Há algo de desesperado na mania de pedir autógrafos, por exemplo. Nesse momento delicado no malabarismo da auto-estima, uma eventual recusa deflagra toda a ira recalcada pela admiração, toda a revolta contra uma existência sacrificada no altar do ídolo.
Assim como os canibais, o fã espera extrair da revista, do autógrafo, uma parte da vida da celebridade para com ela repor o que falta à sua própria vida. Mas a celebridade também está vazia, isolada numa suíte de hotel, sem saber se pede uma pizza, liga a televisão ou abre a última biografia recém-comprada no aeroporto.

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