São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 1995
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Juízes, democracia, imprensa

A Justiça Militar Estadual deve ser substituída com urgência pela autoridade judiciária comum
ROBERTO ROMANO
Em número recente, a revista ``Esprit" traz artigos sobre os nexos, na França, entre magistrados e imprensa. Uma poeira secular envolvia os tribunais. Secularizada a cultura, os juízes, que fugiam dos jornalistas, agora frequentam a mídia e discorrem sobre assuntos econômicos, religiosos, políticos.
Alertam os escritores de ``Esprit": deixar o isolamento para exibir-se nas manchetes é substituir erros. O ``público" e o ``transparente", para os magistrados, têm outro sentido. Trata-se de servir a população. Esta, por intermédio de bons funcionários (os juízes), precisa receber, em tempo hábil, justiça.
Transparente deve ser o ofício, disponível para o exame e o controle dos contribuintes, não o ego deste ou daquele mantenedor do cargo. Público é o pressuposto comum da universalidade, não a verve de substituir ou tutelar a vida civil.
Em nossa terra, é nova a busca de transparência no Judiciário. São fortes, naquele poder, as oposições ``interna corporis". Entre os movimentos que propõem o empenho dos magistrados na vida pública, temos a Associação Juízes para a Democracia.
O seu labor volta-se para a universalização de meios e fins nos julgamentos, conectando os pretórios à vida comum. O alvo é abrir os tribunais para a aplicação das leis ao maior número de pessoas, rompendo o penoso convívio com estratos privilegiados da sociedade.
O princípio das suas atitudes é adquirido no mundo moderno: os juízes devem exercer a crítica das instituições, para aprimorá-las. Eles não podem constituir um estamento neutro, sobretudo face ao direito e à Justiça, plano em que possuem particular competência e responsabilidade.
As corporações, mesmo no Poder Judiciário, são questionadas. Os juristas conscientes as rejeitam. Urge definir o que pertence ao tribunal e afastar os acréscimos devidos ao espírito de corpo. Entre várias manifestações dos Juízes para a Democracia, temos a de seu integrante, o sr. Dyrceu Aguiar Dias Cintra Jr., magistrado que analisou, na imprensa, um corporativismo gravíssimo.
Escrevendo sobre a Justiça Militar Estadual, ele condenou a sua existência. São públicas as origens autoritárias daquele segmento. A instituição é anômala para a distribuição da justiça como virtude cardeal. A maior parte de seus responsáveis é de investidura temporária, e dela não se exige que seja formada em direito, não possuindo, pois, o saber indispensável para a aplicação das leis.
O ``ethos" castrense desaparece sem hierarquia. Ora, na Justiça, os iguais julgam os iguais. A autoridade do juiz comum é delegada pelo Estado. O julgamento em cortes militares foi instituído para manter coesas as Forças Armadas. Isso já se efetiva, com eficácia e tradição que vem desde o Brasil Colônia, no âmbito da Justiça Militar Federal. Semelhante juízo só é concebível em casos de gravíssima indisciplina, traição e crimes conexos.
O membro da polícia é cidadão e possui o direito de ser julgado pela autoridade competente. Se é subtraído à toga e ao júri, ele perde a cidadania plena. O atual ``privilégio" dos policiais -serem julgados por seus pares- é enganoso. No juízo militar não decidem os iguais, mas os superiores.
Retirar a vida humana é ato terrível. Ele sempre foi reservado à soberania dos reis e líderes religiosos, ou do povo, nas formas estatais modernas. Se um policial é livre de culpa, ou se cometeu crime na repressão aos acusados de violentar a lei, só a efetiva autoridade judiciária, formada para este fito, em nome do soberano, o pode dizer.
Argumenta Dyrceu Cintra Junior: ``As Justiças Militares Estaduais ... devem ser extintas. Além de corporativistas, pretendem conciliar conceitos inconciliáveis: o ideal de justiça -baseado na igualdade e na democracia- e a hierarquia militar -que por definição só se pode basear na antidemocracia da diferença entre o que manda e o que obedece-, de cujo topo sai parte dos juízes. A extinção poderia provocar uma reflexão sobre o papel institucional das Polícias Militares" (``Judiciário e Reforma", OESP, 12/11/94).
Semelhantes afirmativas merecem atenta solicitude. O Legislativo cumpre sua missão: projetos de lei sobre a Justiça Militar Estadual já foram nele apresentados. O Brasil espera, dos parlamentares, uma resposta à atual anomalia.
Notícias como a publicada pela Folha (8/5/95, pág. 3-4) não podem se repetir: nos processos pelo massacre do Carandiru, o ``atraso de julgamento inocenta coronéis". A imprensa, mais uma vez, traz evidências de que a Justiça Militar Estadual deve ser substituída pela autoridade judiciária comum.
Há consenso sobre a necessidade de reformas no Estado nacional. Nenhuma é tão urgente quanto esta. Esperemos que o Congresso defina a plena cidadania dos policiais, permitindo-lhes defender a vida e a dignidade das pessoas, sem vingança ou espírito de corpo.

ROBERTO ROMANO, 49, filósofo, é professor titular de filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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