São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 1995
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Ética, política e religião

FRANCISCO CATÃO

``O Brasil não é um país subdesenvolvido, mas um país injusto" (Fernando Henrique Cardoso, em seu discurso de posse)

Um dos aspectos mais alvissareiros da atual conjuntura brasileira é o reconhecimento do primado da ética, pelo menos no discurso de todos aqueles que se ocupam da ``res publica". Não quer isso dizer que o país está moralizado. Pelo contrário. Mas a corrupção dos políticos, os vergonhosos privilégios da classe dominante, dos ruralistas, por exemplo, o corporativismo irresponsável dos funcionários públicos e assimilados, numa palavra, toda a podridão que sempre acompanhou o poder, aparece agora mais claramente pelo que realmente é, não tanto sina de subdesenvolvimento, senão câncer de injustiça estrutural, difícil de extirpar.
Para os cristãos é um prato cheio. Há mais de um século que se vem preparando uma mudança na igreja em relação ao mundo. Não era mais possível manter a posição crítica da modernidade e da participação dos cristãos na política, que chegou ao auge no longo pontificado de Pio 9º. Mas a mudança esboçada pela ``Rerum Novarum" em 1891 custou a repercutir no Brasil. Foi preciso esperar o Vaticano 2º (1962-1965).
Na América Latina em geral, em particular no Brasil, o Concílio resultou, de fato, numa tomada de consciência, por parte dos cristãos, a começar pelos bispos, de que não se podia continuar compactuando com a classe dominante, responsável pela injustiça reinante na sociedade. Fez-se opção pelos pobres.
Opção espiritual e ética, mas que não poderia deixar de se traduzir politicamente numa aliança com a classe oprimida, tanto mais que vigorava a ditadura militar, ostensivamente contrária aos direitos humanos mais elementares.
Mas os desafios aos cristãos no Brasil não coincidiam exatamente com a problemática da igreja em geral, nem com as prioridades da Cúria Romana. Houve descompassos e desentendimentos.
A burocracia do governo central da igreja, como toda burocracia, aproveitou para criar obstáculos ao desenvolvimento harmonioso de uma nova postura dos cristãos em face da sociedade. Silenciaram alguns líderes. Foi-se aos poucos colocando nos postos de responsabilidade pessoas mais afinadas com as orientações do centro, do que sensíveis aos reclamos das periferias.
A igreja chegou no início desta semana à 33ª Assembléia Anual do Episcopado, buscando, para a CNBB, uma orientação mais sensível aos imperativos internos da pastoral religiosa, em harmonia com o governo central da igreja, mas, ao mesmo tempo, trazendo em seu bojo uma corrente francamente favorável à manutenção dos pronunciamentos políticos de contestação da ideologia neoliberal, cuja expressão maior é o documento elaborado em continuidade com a 2ª Semana Social Brasileira, reunida em junho de 1994.
Do ponto de vista ético, o discurso da religião não difere substancialmente do discurso político do atual governo. Por que, então, esse empenho em marcar distância e até oposição aberta ao presidente, ainda nos primeiros meses de seu quadriênio?
Basta ler o que vem sendo escrito por uma boa parte de eclesiásticos e cristãos de uma certa tendência política, para se dar conta de que o pomo de discórdia não é nem a religião nem a ética, mas, simplesmente, a visão política. Todos estão de acordo que vivemos num país injusto, mas os diversos grupos partidários diferenciam-se profundamente uns dos outros, o que é normal e até desejável, na hora de determinar os caminhos a seguir para combater a injustiça.
Uns, pragmaticamente, nunca procuraram, ou não procuram mais, o caminho fora da realidade econômica em que vivemos. Sabem que os avanços científicos e técnicos são irreversíveis. Somente a integração do país na economia mundial e do maior número possível de pessoas na economia nacional permitirá vislumbrar uma sociedade mais justa.
Outros, ideologicamente, ou projetando a ética na política, acham que o passo preliminar a ser dado na direção de uma sociedade mais justa é a relativização das relações econômicas, a diluição da economia, em nome do primado da solidariedade, de uma igualdade ideológica ou mesmo de uma dignidade abstrata da pessoa humana.
Do ponto de vista ético, não há dúvida. Aliás, ninguém é tão estulto que chegue a defender, do ponto de vista ético, a primazia do mercado. Mas, do ponto de vista da política econômica, seria hoje inútil protestar contra a incontornabilidade do mercado, como o foi, no passado, anatematizar a evolução, em nome da fé na criação, ou exorcizar as liberdades públicas, em nome da suprema autoridade de Deus.
Tivemos ocasião de analisar ultimamente, em ``O Monopólio do Sagrado" (edição Best Seller), um certo número de equívocos desse tipo. Talvez todos eles provenham da dificuldade que encontra a religião em conviver, num mundo pluralista, com políticas autônomas, sem brandir as armas ultrapassadas das condenações religiosas ou éticas, desconhecendo, na maioria das vezes, a complexidade dos problemas propriamente técnicos, como acontece com frequência, em mais de um setor da vida humana.

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