São Paulo, sábado, 20 de maio de 1995
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Millôr e o rio Tietê

JOSUÉ MACHADO

Millôr Fernandes disse numa entrevista de TV que o difícil não é contar a piada ou fazer a ironia, mas ter de explicar uma ou outra. Tratando-se do Millôr, é quase certo que a deficiência será do ouvinte ou do leitor. No caso de outros contadores de histórias pretensamente engraçadas, é provável que a piada ou história não tenha graça ou tenha sido malcontada. Ou que a suposta ironia esteja fora de foco, o que explicaria o desentendimento do leitor ou ouvinte. Foi o que teria ocorrido com o livro de crônicas ``Manual da Falta de Estilo" (Best Seller), deste escriba, nas referências, até generosas, feitas por Marcelo Coelho, um dos bons valores desta Folha, no artigo ``Veja maquia estilo para fugir do clichê", publicado em 12 de maio passado.
Diz Marcelo que o livro pode servir de início para o estudo do ``vejês", porque ``o autor aponta distrações de linguagem, erros de gramática e clichês perpetrados (`perpetrados' também é clichê, mas ele usa) por políticos, publicitários e jornalistas".
O livro de fato contém palavras e expressões suspeitas, como ``perpetrar" (``há gosto pra tudo", ``maltraçadas linhas", ``quem procura acha", ``enfermo", ``cometer", ``despautério", ``exprobrar", ``elemento" -referente a pessoa-, ``entrementes", ``grosso modo", ``abundar", ``Deus o tenha", ``adentrar o gramado", ``redonda", ``couro", ``pelota", ``dominar a gorduchinha" -referindo-se a bola de futebol- e outras várias), em paródias pouco explícitas para respeitar a inteligência do leitor.
Como são crônicas declaratórias de amor à linguagem, ao texto, mas escritas em tom deliberadamente farsesco, pareceu-me óbvio que seria facilmente perceptível a intenção de brincar sempre para não chorar jamais na análise de textículos adoentados ou malferidos. Terá sido uma esperança vã?
Diz mais o Marcelo. ``É um livro instrutivo e bem-humorado. Bem-humorado demais, a meu ver: são tantas as piadinhas gratuitas contra Collor, ACM e Maluf que terminamos quase simpatizando com eles."
Por que ``quase simpatizando"? Eu simpatizo muito com eles, grandes figuras! E também com os outros citados: Marco Maciel, Quércia, Fleury, Sarney, Inocêncio de Oliveira, Fiúza, João Alves, Bernardo, Zélia e vários outros. Se pudesse votaria em todos eles ao mesmo tempo, tanto bem fizeram a nós.
Mas o Marcelo tem razão, fora o fato de ``piadinhas gratuitas" ser também um clichê, ainda que indolor. Convém explicar o porquê das repetições. As crônicas foram escritas em épocas diferentes. Às vezes com intervalos de semanas e até meses, quiçá anos. (``Quiçá" também está lá.) E os textos tomaram como exemplo algumas das obras e atitudes desses expoentes, manchetes inevitáveis que ilustravam bem certos fatos de linguagem e de comportamento.
Claro que o leitor nada tem com isso, e que o trabalho de edição deveria ter escoimado, como diria Houaiss, as repetições e variado os alvos. Culpa deles, que flutuam sempre nas manchetes, perpetrando, sim, perpetrando o que há de melhor em política, texto e contexto. São de fato criaturas que merecem figurar em qualquer livrete, bom ou ruim.
O que importa, no entanto, é que a evocação frequente dos meus ídolos não prejudica o objetivo do ``manual": discutir de forma descontraída alguns problemas cabeludos de nossa linguagem de todo dia. Já sei, já sei, descontraída demais.
A propósito, um leitor escreveu dizendo ter sentido falta do Lula lá nas páginas do livro. De fato há pouco Lula, pouco Suplicy, pouco Zé Dirceu, pouco FHC e nenhum Covas, nenhum Nélson Jobim. Ocorre que a seara é tão rica nos outros ajuntamentos políticos geradores de abobrinhas preciosas que aquelas criaturas sobressaem como pirâmides no deserto. Basta contar por alto o número de emissores de fatos magníficos do pefelê, do pemedebê, do petebê, do peperrê, do perrenê e desses outros ``partidos" de sólida base ideológica para sentir como o time é forte. Forte e indestrutível, pois mantém o poder, ou se mantém ao redor dele, desde os tempos do Império, não importa o nome com que se batizaram e se batizarão. Vivam eles!
Ao fim e ao cabo (espanholismo que também aparece no livro), se o singelo ``manual" é bem-humorado demais, só me resta cobrir-me de cinzas e sentar-me para chorar nas margens do rio Piedra. Ou do Tietê, que fica mais perto.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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