São Paulo, sábado, 20 de maio de 1995
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Cannes vê fracasso do politicamente correto

AMIR LABAKI
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

``Beyond Rangoon", do cineasta britânico John Boorman (``Esperança e Glória"), trouxe ontem à competição de Cannes um típico fracasso da estética politicamente correta.
O objetivo seria denunciar o sanguinário regime militar ainda em poder na Birmânia, a partir da saga de uma americana que testemunhou o massacre de manifestações pela democracia em 1988.
O resultado nada convincente desperdiça a bela Patricia Arquette como uma meio sonsa Indiana Jones de saias.
Boorman abre seu filme com o aviso de que tudo é baseado em fatos reais. Parece se defender de todo amadorismo e de toda inverosimilhança que vêm a seguir.
Arquette é Laura Bowman, jovem médica que parte com a irmã (Frances McDormand) em viagem turística à Ásia buscando esquecer o assassinato do marido e do filho.
Em Rangoon, encanta-se com a mobilização oposicionista liderada por Aung San Suu Kyi (Adelle Lutz), vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991. Esquece da vida, tem o passaporte roubado, perde o grupo da excursão e desce assim ao inferno autoritário-tropical.
Acelere o ritmo narrativo à moda Spielberg com a conhecida fórmula ``cidadão americano enfrenta a bárbarie subdesenvolvida" -que já nos deu em seus melhores dias ``Gritos do Silêncio", ``Salvador" e, sobretudo, ``Sob Fogo Cerrado"- e chega-se ao estilo de ``Rangoon".
Todos os lugares-comuns do gênero são requentados. Eis os comícios para câmera, os massacres de festim, os guerrilheiros camaradas, o líder pacifista messiânico, o velho sábio local, o general de aço, o onipresente fotógrafo ocidental.
Boorman se dá até ao luxo de, à moda ``Gritos do Silêncio", escalar em seu próprio papel, o do querido professor cassado, uma real vítima dos acontecimentos que banaliza. Justiça seja feita, U Aung Ko empresta um pouco de sua dignidade a ``Rangoon". Estreante nas telas, tem o mais maduro desempenho de todo o filme. Sorte: a fragilidade do elenco mina tudo cena a cena.
Não é fácil se dar bem com esse tipo de cinema de denúncia. Tampouco ser bem-sucedido nas sempre árduas produções rodadas em florestas (aqui, na Malásia). Boorman casou esses dois desafios. Jamais flertara antes com o filme político, mas já soçobrara ao visitar a selva em ``A Floresta das Esmeraldas" (1985), rodado no Brasil. Tentou a forra. Mais uma vez, deu-se mal.
O fascínio pelo exotismo tropical reapareceu no outro concorrente de ontem, ``Angels & Insects", adaptado por Philip Haas da novela ``Morpho Eugenia", de A. S. Byatt. Haas não foi mais feliz do que em sua fraca versão de estréia para ``A Música do Acaso", de Paul Auster. O tema aqui eram as repercussões na esfera privada da revolução darwiniana do século 19, que fuzilou os deuses e devolveu o homem à Terra.
O personagem principal, William Adamson (Marc Rylance), é uma espécie de pioneiro da ciência na claustrofóbica Inglaterra vitoriana. Insetos são sua paixão. Amazônia, seu paraíso perdido. Homens e mulheres, seu maior desconforto. Haas teria um filme a tirar deste enredo, mas falta humor a seu roteiro, carisma a seu protagonista e agilidade à sua direção.

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