São Paulo, domingo, 21 de maio de 1995
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Fuga envolvia gângster e 'tubogramas'

DO "THE INDEPENDENT MAGAZINE"

Varian Fry se valia de falsificações e mensagens passadas em tubos de creme dental para ajudar protegidos
Em pouco tempo Varian Fry recrutou ajudantes muito necessários. Dois deles se tornariam cruciais ao sucesso de sua operação.
O primeiro era Albert Hirschman, 25, economista alemão, a quem deu o apelido de Beamish.
O outro foi Miriam Davenport, dinâmica jovem de Boston que estudava história da arte na Sorbonne, em Paris, no início da guerra.
Liderado por Fry, esse pequeno grupo lançou uma das mais audaciosas operações de resgate da Segunda Guerra Mundial.
Alguns dias mais tarde foi aberto o Centre Américain de Secours, numa fábrica de bolsas, então abandonada, na rua Grignan.
Ali, desde o início da manhã até tarde da noite, Fry e os dois ajudantes entrevistavam refugiados.
As informações básicas de cada pessoa e o nome de alguém que pudesse confirmar essas informações eram anotadas numa ficha. Os endereços eram omitidos.
A alguns refugiados, Fry dava dinheiro para alimentos, a outros uma carta de apresentação a uma agência humanitária legítima.
Aos que integravam sua lista, mandava aguardar notícias de possíveis "planos" de viagem.
Todos os dias, depois de o último refugiado sair do local, Fry e Beamish se dirigiam ao banheiro, abriam as torneiras para que não fossem ouvidos e discutiam problemas que tinham surgido.
Depois escondiam os documentos mais incriminadores geralmente atrás do espelho.
Qualquer dinheiro que houvesse ia para a casa de Beamish. Fry espalhava as fichas pela mesa, em cuidadosa desordem, de modo a perceber, no dia seguinte, se alguém tinha tocado nelas.
Mas o maior problema era encontrar uma rota de fuga. A mais evidente -pelo mar- era também a mais perigosa.
As embarcações disponíveis frequentemente não estavam em condições de navegar e o tráfego marítimo em Marselha era sujeito a rígidas restrições.
No mar aberto, as frotas italiana e alemã patrulhavam o mar Mediterrâneo. E, mesmo que um barco chegasse até o norte da África, ainda correria riscos de ser capturado e enviado de volta à França.
Restava a possibilidade das montanhas dos Pirineus. Embora Portugal e Espanha houvessem reafirmado sua neutralidade, ainda estavam dispostos a permitir a passagem de refugiados com vistos de trânsito, desde que tivessem um destino final certo, como os EUA.
O problema era encontrar uma maneira de sair ilegalmente da França -por exemplo, atravessar a fronteira sem visto de saída- mas entrar na Espanha legalmente.
Durante a Guerra Civil Espanhola, Beamish havia combatido por algum tempo numa unidade republicana em Barcelona.
Ele sabia que nas montanhas de Cerbère, uma vila de pescadores situada perto da fronteira espanhola, os postos de fronteira francês e espanhol eram localizados de tal modo que desde um deles não se podia avistar o outro.
Beamish disse a Fry que era possível escalar a montanha do lado francês sem ser visto pelos guardas e, ao mesmo tempo, não ultrapassar o posto fronteiriço espanhol, onde era imperativo obter carimbo de ingresso no passaporte.
Ele desenhou um mapinha para Fry, que se tornaria documento histórico. Mas havia outros documentos, mais formais, que eram necessários -uma "carte d'identité" (carteira de identidade), exigida para qualquer pessoa que viajasse pela França- e um passaporte.
Muito poucas das pessoas da lista de Fry podiam correr risco de viajar sob os próprios nomes. Fry teve que adquirir grande número de passaportes usados e carteiras de identidade em branco.
Para falsificar os documentos, ele contratou os serviços de um simpático cartunista austríaco chamado Bill Freier.
Ele pegava um passaporte comprado no mercado negro -em geral holandês ou belga, porque tinham menos probabilidade de serem examinados- e, com uma lâmina de barbear, retirava a foto original, colando em seu lugar a foto de quem usaria o passaporte.
Depois, com um pincel finíssimo, reproduzia o carimbo que oficializava o documento.
Finalmente, dava ao passaporte uma aparência de usado, com a ajuda de algumas gotas d'água, um pouco de cinza de cigarro e uma lixa fina.
O primeiro a fazer uso do trabalho de Freier foi Konrad Heiden, o homem que revelara ao mundo a verdadeira natureza de Hitler em sua biografia "Der Fhrer.
Depois de Heiden partiram, em rápida sucessão, Hans Natonek, Emil Gumbel, o grande matemático cujo pacifismo expresso provocara um tumulto em Heidelberg, Otto Meyerhof, bioquímico ganhador do prêmio Nobel, e os romancistas Leonhard Frank, Alfred Polgar e Hertha Pauli. Eles também chegaram a Lisboa em segurança.
Dois outros problemas começaram a tornar-se críticos: fazer dinheiro chegar à França e conseguir fazer mensagens sair do país.
Fry procurou um conhecido gângster córsico, um homem que tinha amigos que queriam tirar dinheiro da França.
Em troca de dinheiro, ajudou amigos do gângster. Desta forma, conseguiu juntar uma quantidade razoável de dinheiro em pouco tempo.
Quando havia uma mensagem para ser transmitida a Nova York, Fry a datilografava sobre papel fino, para cartas aéreas.
Depois cortava o papel em tiras, cada uma contendo uma única linha e as colava uma na ponta da outra, em sequência. Tudo era enrolado e colocado dentro de um tubo quase vazio de pasta de dente.
Isso tudo ajudou a organização da fuga de cerca de 1.500 pessoas.
O "tubograma era dado a algum refugiado para que o entregasse ao chegar nos EUA. Nem uma única mensagem deixou de ser recebida.
Foi assim que Varian Fry conseguiu organizar as fugas de quase 1.500 homens e mulheres, entre eles os artistas Marc Chagall, Jacques Lipchitz e Max Ernst; músicos como Wanda Landowska, cientistas como Emil Gumbel e escritores como Hannah Arendt e André Breton.

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