São Paulo, sábado, 27 de maio de 1995
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Poder cidadão e Estado burocrático

FERNANDO GONÇALVES

A retomada do poder pelo cidadão coloca-se no âmago do redemoinho da transformação que envolve a humanidade hoje, como ciclicamente ocorre. Isso, entretanto, está subjacente. O que ganha espaço e relevância no debate em nível nacional recebe outras denominações mais grandiloquentes -reengenharia do Estado, desestatização, privatização. Sim, o Estado como centro e matriz geradora. E isso é produto da distorção consumada de que o Estado se sobrepõe à própria sociedade. O cidadão parece alienado de seu poder inerente e original.
O modelo de organização do Estado, desenhado em função das necessidades da era industrial, caracteriza um modelo burocrático ultrapassado, como constata o analista político David Osborne, propondo a ``reinvenção" do aparato estatal. Indubitavelmente, quanto maior a burocracia, maior a responsabilidade da ocorrência de práticas contaminadas pela imoralidade administrativa.
Segundo a professora Carmen Rocha, ``o utilitarismo, que se impôs como baluarte das idéias básicas do Estado, contribuiu para que os fins não devessem ser questionados segundo critérios moralmente discutidos e discutíveis, pois o seu sentido se continha apenas no resultado material obtido".
O fazer-se leis, que asseguraria a perfeita liberdade, igualdade e fraternidade, abandona o seu primado e é fértil em lacunas, redundâncias, imprecisões, falhas técnicas; punições são irrelevantes em face do tamanho e do prejuízo da infração.
O sistema jurídico confere impulso à burocratização, já que certos ``institutos jurídicos são caracterizados por uma tendência autodinâmica à produção de burocracia", como observa o jurista alemão Rainer Wahl.
O homem comum precisa de ``experts" para decodificar o emaranhado. O conjunto de leis e normas fecha-se em enigma, alijando-o da esfera decisória, limitando-o ao papel de espectador e objeto passivo do impacto que a burocracia produz em sua vida cotidiana.
Enquanto isso, o cenário de hiperburocratização é o contexto ideal para o favorecimento e o locupletamento de pequena parcela dos que dominam, intervêm, por vezes legislam em causa própria e até mesmo determinam a inclusão de dispositivos com destinatários certos. E esses lucram com súbitas mudanças de regras, vencem licitações com preços superfaturados, enriquecem detendo concessões exclusivas e clientela cativa.
Diante do quadro seria compreensível, e muitos até desejariam que assim fosse, que o brasileiro ficasse simplesmente de frente para o mar e de costas para Brasília, como mais ou menos entoou conhecido poeta popular. E isso significa dar de ombros e votar nulo, votar em branco, deixar a análise dos orçamentos aos iniciados, esquecer-se da contrapartida que se merece como contribuinte de impostos, pensar que os recursos do Tesouro Público são de uma casta, assumir que educação, saúde, segurança e transporte não são funções do Estado.
A cidadania brasileira há pouco afirmou sua soberania política, demonstrando com a campanha do impeachment que tipos de procedimentos governamentais na condução do Estado ferem seus princípios éticos. Hoje, entretanto, não pode repousar no sono da Bela Adormecida quando é essencial definir que paradigma de Estado lhe interessa, sob a égide da ética.
Felizmente, a tendência que se vislumbra, oriunda dos quatro cantos do planeta, indica que se reavivam valores essenciais à condição humana -ideal, justiça, verdade, dignidade e moralidade, inclusive a pública. A nova era que surge está centrada no indivíduo responsável, consciente de seu próprio papel no mundo como agente de mudanças, para além de conceitos ideológicos restritivos.
Por isso, associam-se aqui e ali os cidadãos desejosos da soberania social e da democracia compartilhada onde sua voz ressoa. Nesse sentido, a criação do Instituto Latino-Americano Contra a Corrupção (Ilacc), no Equador, e, mais ao sul, junto ao Trópico de Capricórnio, do Instituto Catarinense de Combate à Corrupção (Inccor) simbolizam o surgimento de pólos aglutinadores do novo pensamento que objetiva tornar real o controle social. E isso é sempre uma boa nova.

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