São Paulo, sábado, 10 de junho de 1995
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Surge no Rio o primeiro leão de favela ;Viva o leão britânico

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Surge no Rio o primeiro leão de favela
O leão trabalhista britânico liquida com um urro em Londres o torturador brasileiro que posava de Apolo
Sendo, como é, o centro de uma Roma tardia (vale sempre lembrar uma expressão de Darcy Ribeiro), o Rio de Janeiro havia de inventar como adversário uma tardia Cartago, que são as favelas. Tal como um barracão de favela, Cartago começou humilde, lá pelo norte da África, e depois foi crescendo, crescendo, pondo as manguinhas de fora, e acabou naquele desplante de organizar seu tráfico de armas pela Sicília, pela Itália, pela Ibéria.
Foi preciso, afinal, mais de um Cipião para finalmente varrer da face da Terra (que afinal de contas pertencia a Roma, ora essa) os barracos, ou barracas militares dos cartagineses.
O defeito dos romanos, como o dos cariocas, é que no fundo, no fundo, eles gostavam mesmo era de festas dionisíacas, como as do Carnaval ou as do circo, que faziam o povo esquecer do pão.
E, ao falar em circo, a gente se lembra logo dos leões, que vinham da África, como os cartagineses, e que agora estão chegando também às favelas do Rio, como não me deixa mentir o Marcinho VP, dono de uma boca-de-fumo na favela Dona Marta, aqui em Botafogo. A Dona Marta fica debruçada sobre o palácio do prefeito do Rio, o chamado Elizabetão, por ter sido construído, como Embaixada Britânica, já no tempo da segunda Elizabeth, que ainda reina, e por cima também da rua S. Clemente.
Marcinho, aborrecido com a interferência da polícia, e agora até das Forças Armadas, no trabalhoso tráfico em que labuta, resolveu, em lugar de ter um cão de guarda, ter um leão. Outro dia, ao darem uma batida no Dona Marta, soldados do 19º Batalhão da Polícia Militar, Copacabana, viram-se, como cristãos de outrora, diante de um leão.
Tratava-se em verdade de um leão ainda pequeno, talvez até uma leoinha, mas assanhado, agressivo, cheio de unhas e dentes. Apesar de não terem efetuado nenhum exame ginecológico no animal, a impressão inicial dos assustados soldados foi de que se tratava de leoa, e prontamente a chamaram Engraçadinha. Só mais tarde recebeu o animal, que é macho, o inevitável nome de Edmundo, que ostenta até agora.
Minha capacidade de julgamento me segreda que vale a pena reter alguns pormenores do caso para uma futura História do Rio (tal como fizeram o Padre Perereca em dias de D. João 6 e de Dona Carlota Camurati, ou como Vivaldo Coaracy em dias mais recentes), visto que, ao que se saiba, esta é a primeira aparição de um espécime leonino em barraco de favela. E leões, como é sabido, vêm da Costa d'África, como os cartagineses.
Marcinho, quando arranjou seu leão de uns seis meses de idade e uns 40 quilos de peso, tratou de torná-lo soberbo como um camelo de Cartago. Comprou-lhe uma reluzente corrente, que se diria prata, e uma dessas coleiras que mais parecem trabalho de ourivesaria e que ele tinha visto no pescoço de dobermans e dálmatas das casas bacanas da rua da Matriz. E trancou o bicho no seu barraco, que fica nos altos do Dona Marta, com esplêndida vista para o Cristo do Corcovado.
Ao contrário desses cães cheira-cheira que nos aeroportos são usados para deixar constrangidos passageiros que vivem do transporte de um alcalóide cristalino feito de certa erva dos Andes, o leãozinho guardava para Marcinho o dito alcalóide e cigarros de diamba, pó e fumo.
Marcinho não estava em casa ao chegarem os soldados. Possivelmente fora avisado pelos soldados. Seja como for, não estava quando, de acordo com as regras do jogo, os soldados entraram no barraco derrubando a porta a pontapés e coronhadas. Só se detiveram por um instante ao ouvir o rugido e ver os olhos coruscantes de um Edmundo que exigia cartão vermelho para aqueles bárbaros do 19º.
Mas quero deixar registrado aqui o nome do comandante do pelotão invasor, coronel Dorasil Corval, por dois motivos: pela própria sonoridade do nome e pela cortesia com que, depois de brutalmente invadido o barraco, tratou o leãozinho. Mandou buscar uma rede de futebol do campo de esporte da favela e com ela embrulhou o leão, como se se tratasse de um trapezista acidentado.
Assim enrolado, ou emaranhado, Edmundo foi colocado na mala do Gol do batalhão e levado para o Circo Garcia, de onde foi para o zoológico de S. Cristovão.
Viva o leão britânico
E já que hoje aqui é dia de leões, louvemos com três hurras o leão britânico, cujos sonoros rugidos obrigaram o Exército brasileiro e a Presidência da República a retirar do cargo de adido militar em Londres um covarde torturador de presos dos anos 70. Tanto a Anistia Internacional como o Grupo Tortura Nunca Mais pediam que pelo menos se removesse de um posto honroso esse criminoso, que funcionava, ao que tudo indica com grande prazer, no Doi-Codi da rua Barão de Mesquita.
Aliás, pessoalmente torturado por ele, o político e jornalista Cid Benjamin escreveu outro dia em ``O Globo" um artigo em que retratava esse celerado, coronel Armando Avólio Filho. Avólio se apelidava ele próprio Apolo, por se achar muito bonito. Nítido caso de psiquiatria e presídio, é chamado, pelo Exército corporativo que é o nosso, de ``oficial brilhante".
Não fosse o rugido do leão britânico, e sobretudo do leão do Partido Trabalhista britânico, que já interpelava a respeito do torturador o governo de Sua Majestade e o governo do Planalto, ainda estaria em Mayfair, Londres, esse brilhante membro do Corpo de Torturadores do Exército Nacional, companheiro ideal do brigadeiro Burnier, que foi um dos assassinos do meu amigo Rubens Paiva.
Esse corporativismo sádico das Forças Armadas Brasileiras, apesar de praticamente não chocar a Presidência da República, é bem pior que o corporativismo dos petroleiros. Pior do que ficar uns dias sem gasolina é ficar a vida inteira sem espírito de justiça, sem respeito e caridade pelo próximo e sem vergonha na cara.

Férias: Esta coluna entra hoje em férias de um mês

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