São Paulo, sábado, 10 de junho de 1995
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Francesco Clemente assume suas contradições

DANIEL PIZA
ENVIADO ESPECIAL A VENEZA

Embora não possa parecer ao observador desatento, as pinturas de Francesco Clemente, 43, são bastante diferentes das outras obras da seção final de ``Identidade e Alteridade", a exposição comemorativa dos cem anos da Bienal de Veneza, que será aberta ao público amanhã.
A seção ``Cor Real e Virtual" está no museu Correr, na praça San Marco. O restante de ``Identidade e Alteridade" está no palácio Grassi. É um festival de escatologia e morbidez.
Clemente também gosta de imagens brutais, mas dá a elas lirismo e humor. Contradição? é sobre o que ele fala na entrevista a seguir, dada com exclusividade à Folha anteontem.

Folha - Como o sr. se sente nessa companhia: não teme que pareça ao visitante um concurso de escatologia?
Francesco Clemente - Não. Me sinto bem. Acho que há essa impressão por causa do tema da exposição, que é o corpo humano. Mas acredito que cada um nesta sala tem sua particularidade, sua maneira de ver o corpo humano.
Folha - Mas o sr. não diria que há, genericamente, dois estilos? Um é o realismo de Eric Fischl, Marlene Dumas e Vincent Corpet. Outro é a morbidez exacerbada de Wole e Nancy Burson?
Clemente - Talvez tenha sido isso que Jean Clair tenha querido dizer ao chamar esta seção de ``O Corpo Real e Virtual". Mas uns usam fotografia, outros pintura, outros escultura. Não gosto de generalizações. Todos têm seu valor.
Folha - O sr. não se encaixa em nenhum daqueles dois estilos. Não é um realista como Fischl, que quer mostrar o corpo como é, com todas as imperfeições, nem um ``apocalíptico" que parece querer chocar o tempo todo. Não concorda?
Clemente - Pode ser, mas o que há de diferente?
Folha - O humor. Os outros são sérios e dramáticos aqui.
Clemente - (risos)É verdade. Mas são interessantes. O que vale é que há muito menos espontaneidade no trabalho dos jovens de hoje. Tudo é muito elaborado, controlado mas aí aparece Marlene, por exemplo. Lá, você vê humor, espontaneidade.
Folha - Por várias vezes, segundo consta, o sr. quase largou a pintura. Por que?
Clemente - Porque acho que o objetivo de todo pintor é não pintar. Estou generalizando. Meu objetivo é realmente me abster.
Folha - Como assim?
Clemente - Quero chegar às coisas sem nenhuma mediação, entende? Olhe, quase todo ano, por alguns meses, vou à Índia para descansar e meditar. Um dia vou poder fazer isso em qualquer lugar, a qualquer hora. E então largo a pintura. Depois vejo como ganho a vida.
Folha - O sr. mora em Nova York, descansa na Índia. Pinta com sexo e violência, e chama isso de ``Meditações". Tem crenças budistas, que lembram as idéias hippies dos anos 60, e está aqui expondo ao lado da morbidez dos anos 90. Defende a espontaneidade, mas quer se ``abster" da obra. Como explica essas contradições?
Clemente - Não ``explico", mas as ``entendo". Vivo em Nova York porque é um ambiente que me estimula artisticamente. Lá, fui amigo de (Jean-Michael) Basquiat e keith Haring, dois pintores que me ensinaram muito.
O fato de minha pintura ter cenas de sexo e violência não significa que eu queira me abster disso. São temas temas míticos, lendas.
Quanto mais misterioso, melhor. E quer algo mais misterioso do que o sexo, do que as nossas perversões? Os orientais sabem disso, tanto que as religiões deles tratam abertamente de sexo.
O ``kama sutra" nunca poderia ter sido criado pela igreja Cristã. E é um livro sagrado!
Folha - É por isso que nessa série ``Meditação", temos em primeiro plano algumas cabeças que parecem assistir as contorções sexuais, como um teatro?
Clemente - Exatamente. O ``voyeurismo" não é uma invenção do século 20. É da nossa natureza Humana.

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