São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mel Gibson esbanja sangue em épico escocês

SERGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Os escoceses não sabem quem foi Tiradentes, mas em compensação nós não sabíamos quem era William Wallace. Agora, graças ao australiano Mel Gibson, ficamos sabendo que William Wallace foi mais que o Tiradentes da Escócia. Foi o Mad Max -perdão, o Mad Bill- medieval de lá.
Pela clássica divisão do historiador Eric Hobsbawn, Wallace seria um ``rebelde primitivo", ao contrário de Rob Roy, recentemente visto na tela encarnado por Liam Neeson, que foi o mais célebre ``bandido social" da Escócia, o Robin Hood de Kilt.
Nenhum deles virou marca de uísque. Ou os escoceses são ingratos ou seus heróis nacionais ou suas destilarias estão todas nas mãos de ingleses.
Em matéria de valente medieval, com saiote e cabelo mais comprido que o da mocinha, ainda prefiro aquele príncipe celebrizado por Hal Foster e vivido no cinema por Robert Wagner.
A julgar pelo filme de Gibson, Wallace também teve, como príncipe valente, uma bela mulher, Murron (Catherine McCornack), e, avulsamente, uma princesa tão deslumbrante quanto Aleta, chamada Isabelle (Sophie Marceau), que por ele traiu o marido e sua corte.
Isabelle foi mais afoita e despudorada que lady Marian, que ao menos era solteira quando dormiu com Robin Hood, o inimigo número um de sua corte. Também pudera: seu príncipe era o que o eufemismo britânico por muito tempo chamou de sodomita.
Ao contrário de Oscar Wilde, ele jamais perdeu o poder. Mas seu filho (e herdeiro) tinha o sangue de Wallace, morto e esquartejado em praça pública em 1305.
Órfão precoce, por obra da tirania inglesa, Wallace foi criado por um tio que o educou com todos os saberes da nobreza. No filme, ele é mais que um plebeu esclarecido. Gibson o transformou numa espécie de Thor poliglota, invencível no papo e na porrada.
Com a cara pintada de azul e empunhando uma espada tão infalível quanto a Excalibur, o Wallace de ``Coração Valente" só falta fazer chover -o que, diga-se, não seria façanha das mais espinhosas na Escócia. Ou mesmo na Irlanda, onde boa parte desse épico milionário foi rodada.
Grandiloquência
Quase tudo nele é grandiloquente. Sobretudo os gastos. Custou US$ 75 milhões e consumiu cinco meses de filmagem, 3.000 figurantes (entre os quais 1.700 soldados do exército irlandês), 150 cavalos (mais dois mecânicos) e 6.000 figurinos.
Só a batalha de Stirling, onde os ingleses tomaram uma tunda dos brancaleones escoceses, levou trinta dias sendo filmada. Com nada menos de dez câmeras. E vários tonéis de sangue artificial.
Não me lembro de ter visto batalhas coreografadas com tamanho esmero sádico. Nem nas carnificinas de Sam Peckinpah jorrava tanta hemoglobina.
Cabeças cortadas
Se você aprecia cabeças decepadas, empalações, estripações e violências quetais, ``Coração Valente" é um banquete. Gibson alega que quis fazer um épico ``radicalmente realista". Com quase três horas de duração, ``Coração Valente" resultou num épico acima de tudo radicalmente longo e sem novidades.
Mas não tão radicalmente fiel aos fatos. Wallace tinha seu lado bárbaro, suavizado por Gibson para não comprometer a mística do herói.
Na batalha de Stirling, por exemplo, ele fez mais do que degolar o general vencido. Tirou-lhe a pele e com ela confeccionou um cinturão. Wallace não foi, exatamente, o Tiradentes, mas o Tirapeles da Escócia.

Filme: Coração Valente
Produção: EUA, 1995
Direção: Mel Gibson
Elenco: Mel Gibson, Catherine McCornack
Estréia: hoje nos cines Astor, Center Iguatemi, Metrópole e Marabá

Texto Anterior: Livro traz último ensaio de Tom Jobim
Próximo Texto: Palavra deve ser sempre mantida
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.