São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 1995
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Carpe canem, cave diem

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Desde cedo ameaçava ser espírito de porco. Nas aulas de latim, me explicaram o uso do acusativo com dois exemplos muito citados: o verso de Horácio ``carpe diem" (aproveita o dia) e o ditado que outro dia lembrei, inscrito em mosaico no pórtico da Casa do Poeta Trágico, em Pompéia, uma das mais visitadas daquela cidade-fantasma: ``Cave canem" (cuidado com o cão).
Meus conhecimentos de latim (ou de qualquer outra língua, viva ou morta) nunca foram suficientes para questionar tais e tamanhas filigranas de gramática. Eu achava errado não o uso do acusativo, mas o sentido da frase: aproveita o dia. O que seria aproveitar o dia? O restante do verso de Horácio é esclarecedor: ``aproveita o dia e crê o mínimo no dia seguinte". Bolas, o dia de hoje foi o dia seguinte de ontem, como aproveitar um dia do qual se esperou o mínimo?
Na outra ponta da corda, havia o aviso para ter cuidado com o cão. Tirante os carteiros e cobradores a domicílio, os cães ainda são merecidamente os maiores amigos do homem -desde que se chegue a uma conclusão sobre o que é homem.
Animais com olfato desenvolvido, eles percebem à distância o que o homem é. Não adianta embromar o cão com títulos, posses e ideologias. Tampouco eles dão importância a esses penduricalhos. Há aquele provérbio chinês que provavelmente foi feito por um árabe: ``se o teu pior cão não gosta do teu melhor amigo, livra-te do teu melhor amigo".
Dias e cães são mais parecidos do que à primeira vista parece. Há o dia de cão e, em alguns restaurantes da Malásia, há o cão do dia -que é servido com brócolis. Os americanos, apesar de amarem os cães, botam bastante ketchup em cima e gostam, garantem que fica parecendo pizza.
De maneira que, já no início da faina humana, além do ketchup, desconfiei dos provérbios chineses, árabes ou latinos. O certo é: aproveita o cão. E cuidado com o dia. Em latim fica mais suntuoso.

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