São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 1995
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Metalepse

OTAVIO FRIAS FILHO

As figuras de linguagem são atalhos para se chegar logo ao sentido. Ao comparar a amada com a lua ou dizer que ela é uma flor, como vimos no Dia dos Namorados, o pensamento se transporta imediatamente, sem demoras explicativas. Tropo, sinônimo de figura de linguagem, em grego quer dizer desvio.
A linguagem não apenas está cheia de figuras vivas como é formada a partir de figuras que morreram. Como mostra o próprio termo ``tropo", cada palavra é a ruína de uma imagem esquecida no passado. A razão é que não é possível pensar a não ser por imagens.
Dizem que a alegoria é a imagem clássica por excelência, assim como a metáfora é o tropo do romantismo. Com tudo o que há de arbitrário e discutível nessas definições, bem que a metalepse poderia ser testada como a imagem característica da nossa época.
Menos conhecida que suas primas famosas, metáfora e metonímia, a metalepse é uma figura que anula o tempo. Ela inverte o antes e o depois. Dizer que as crianças são os cidadãos de amanhã é metalepse. ``Os mortos governam os vivos", uma fórmula de Comte, também.
Em matéria de política e economia, nossa atitude não poderia ser mais metaléptica. Numa onda fortemente regressiva, o futuro passa a estar na economia de mercado. O socialismo leva ao capitalismo, a globalização gera xenofobia e a informática aumenta a exclusão.
No plano cultural predomina a paródia, a ``releitura", a citação. Desde a instalação pós-moderna até o desenho animado ``Cavaleiros do Zodíaco", estamos triturando as imagens do passado, anulando as distâncias de tempo entre elas para reunificá-las numa simultaneidade ideal, a do presente.
Mas é na moda que aparecem, como sempre, as evidências mais gritantes. A sensação é a de um ímã que pudesse atrair, aleatoriamente, peças do guarda-roupas de todas as eras. Rendados, suásticas, cruzes, matrizes de diversas origens são recombinados à exaustão, porque só restou originalidade no que é bizarro.
São todos sintomas de decadência. Em termos de história das culturas, a idéia de decadência, porém, não implica conotações morais ou materiais. Ela reflete tão-somente uma demasia de experiências disponíveis e a consequente crise de originalidade.
O que assinala a decadência é o relativismo dos valores, o ecletismo do gosto e o internacionalismo das vivências, três emblemas tão presentes que já não damos um passo sem esbarrar neles. A metalepse, na sua volúpia de anular o tempo, é tanto efeito da decadência quanto tentativa, frustrada, de curá-la.
Mas nem tudo é pessimismo. É nos períodos de decadência que as ilusões são deslocadas, os mitos desmancham e prevalece um apego saudável ao que é concreto. Só aprendemos na decadência, e a vida, do ponto de vista individual, vale muito mais a pena nela do que em qualquer outro tempo.

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