São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 1995
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A arte de pescar

JOÃO SAYAD

Nos anos 30, havia um grande problema: como aumentar o emprego. Muitos economistas argumentavam que a solução era deixar os salários livres -com salários menores, o emprego aumentaria. Em 1936, no famoso ``Teoria Geral do Emprego e da Renda", Keynes argumentava que salários nominais flexíveis -que sobem e descem ao sabor da situação- tenderiam a agravar o problema do desemprego. Contra-intuitivo, revolucionário. Não convenceu, ou convence pouco até hoje, 59 anos depois.
O argumento de Keynes era assim: se os salários caírem, o emprego não vai aumentar. Pelo menos por duas razões: primeiro, porque, se os salários caírem, os empresários imaginarão que a demanda vai cair e, portanto, não contratarão mais funcionários. Depois, mas muito importante, porque, se os salários estiverem caindo, provavelmente os preços também estarão caindo.
E a mão-de-obra pode se tornar mais cara, e não mais barata: por exemplo, o salário cai de R$ 100 para R$ 80, e o preço de um automóvel popular cai de R$ 10.000 para R$ 8.000. Se isso acontecer, a montadora de automóveis vai contratar mais trabalhadores? Provavelmente não.
Raciocínio simples, claro, e, a meu ver, muito convincente. Mas o calor ideológico das discussões, as paixões e os interesses converteram essa discussão numa discussão interminável.
Por que lembrar isso agora? Porque o raciocínio do salário serve direitinho para o câmbio. Câmbio e salário são preços da mesma natureza -muito importantes, influenciam todos os demais preços e, se flutuam, acabam gerando flutuações nos demais preços e não resolvendo o problema.
Hoje muitos analistas afirmam que o câmbio, o preço do dólar no Brasil, está errado -porque houve inflação desde julho de 94, quando foi lançado o Plano Real, porque o ex-ministro Ciro Gomes abaixou as tarifas muito rapidamente no ano passado, porque temos um déficit comercial. Concordamos. Quase todo mundo concorda.
O câmbio real -quer dizer, o câmbio relativamente aos preços em geral e aos salários- está baixo. Mas, se o câmbio subir, todos os preços podem subir, e o câmbio real pode ficar mais baixo ainda do que é hoje e, portanto, não resolver o problema. Teríamos inflação e o novo valor do dólar pode não ser suficiente para resolver a questão.
Então o melhor é não fazer nada? Infelizmente também não resolve o problema. Pois, se nada for feito, chegará um dia em que existirão mais compradores do que vendedores de dólares, e o câmbio subirá espetacularmente com resultados horrorosos -inflação de volta, saída de capitais etc.
Tantas dificuldades e incertezas costumam gerar uma resposta simples, robusta, típica de quem tem medo de conviver com a incerteza: deixa que o mercado resolve. Infelizmente essa resposta também não serve.
O mercado sozinho funciona mal, tem um horizonte de planejamento de no máximo três meses e erra bastante. Depois, o que estamos vendo é o mercado de câmbio livre, mas o mercado de juros influenciado pelo governo -e juros altos atraem dólares do exterior, que derrubam o preço do dólar aqui.
Para salários e câmbio, a regra é a mesma. Podemos saber que estão altos ou baixos. Mas não sabemos como corrigi-los. No caso do câmbio, a melhor regra é caminhar lenta e seguramente, mas sempre para um valor mais alto.
O câmbio segura os preços, é a base do Plano Real, o que chamam de âncora. Uma metáfora melhor do que a âncora seria a pesca. O câmbio é como o anzol de um pescador que fisgou um peixe grande, todos os outros preços, a taxa de inflação.
Para segurar a inflação é preciso ter sensibilidade para dar linha e recolher linha. Até que o peixe esteja bem cansado e bem fisgado no anzol. Se puxar firme, a linha quebra. Se der muita linha, o peixe vai longe e nunca volta. Difícil, mas é assim que se pesca.

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