São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Destra e sinistra

GILBERTO DUPAS

Instigado por Norberto Bobbio, que o velho amigo Celso Lafer fez questão de me presentear no original, comecei a fuçar os jornais em busca do que mudou na política brasileira após o débâcle do leste.
Salvo nuances, encontrei o de sempre. Intelectuais, políticos, idéias e partidos ditos de esquerda ou direita. Dentro de cada facção, um novo leque de graduações multiplicando ao infinito as combinações possíveis. O PT na esquerda, por exemplo, abrigando subtendências da esquerda radical à extrema direita. Idem para o PFL na direita. Ou centro-direita? Qual a diferença real entre um direitista do PT e um esquerdista do PFL?
Claro que a classificação depende de quem a faz. Para os que se consideram de esquerda, os que se auto-rotulam social-democratas seriam a direita enrustida, os neoliberais a direita e os liberais a direita explícita. Na verdade, a direita brasileira nunca gostou de ser chamada de direita nem de conservadora.
Já a esquerda sempre se sentiu mais à vontade em sua alcunha. Em recente pesquisa do Idesp, 51% dos congressistas colocam-se na esquerda, 28% no centro e apenas 11% na direita. Os restantes 11%, por sabedoria ou ignorância, não souberam responder. É natural que, numa sociedade profundamente desigual como a nossa, ninguém goste de parecer imobilista e defensor de privilégios.
Mas, afinal, para que servem hoje esses rótulos? Sartre foi um dos primeiros a dizer que esquerda e direita eram, de fato, duas caixas vazias. Bobbio prefere trabalhar com a idéia de que a árvore das ideologias está sempre verde e que não haveria nada mais ideológico do que afirmar que as ideologias estão em crise.
Lembra, porém, que entre o branco e o preto existe sempre o cinza, como entre o dia e a noite há o crepúsculo. Batiza a dupla esquerda-direita como antitética e acha que, após a recente dissolução dos regimes comunistas, os ventos da história mudaram mais uma vez de direção. Desce a esquerda e sobe a direita.
Do ponto de vista da interpretação do movimento histórico, Bobbio lança luz sobre uma questão muito atual que divide opiniões e paixões na era FHC. Introduz uma díade alternativa: moderantismo-extremismo. Enquanto o moderantismo seria gradualista e evolucionista, considerando como guia para a ação a idéia de processo, o extremismo seria basicamente catastrofista.
Interpretaria a história aos saltos, por rupturas. Assim, os extremistas valorizariam as virtudes guerreiras, heróicas, enquanto os moderados esposariam as virtudes consideradas pejorativamente mercantis: a prudência, a tolerância, a razão, a paciente busca da mediação, essencial ao ``mercado" das opiniões, das idéias, dos interesses em conflito, que constituiriam a essência da democracia, na qual o compromisso é indispensável.
Para os extremistas, democracia é sinônimo de mediocracia. Quer dizer: reformismo, solução pacífica dos contrastes, visão pragmática da política e dos conflitos que nela se desenrolam.
Peter Drucker tem uma abordagem curiosa para a questão. Para ele, as velhas utopias do Estado como ente superior que promete a justiça social existem só para ganhar eleições. Em sua opinião, o último político ocidental de envergadura que acreditou na salvação do mundo pela ideologia social foi Willy Brandt.
Seu sucessor, o líder dos socialistas alemães, Helmut Schimidt, já foi um ``estóico", não mais um ``crente". Ele só tinha uma ideologia política: a decência, permeada de eficiência. Acreditava e praticava o pragmatismo. Seus princípios eram efetividade e relação entre custos e benefícios.
Há pouco participei de um debate sobre a já mencionada pesquisa do Idesp a respeito do comprometimento do Congresso com as reformas. Sentado ao meu lado, um conhecido monetarista e liberal afirmava que era importante baixar os juros, caso contrário os rentistas iriam comprar as estatais privatizadas de graça.
Defendia também a socialização do capital das privatizadas permitindo aos trabalhadores que comprassem ações com recursos dos fundos sociais. Do meu outro lado, um economista pesado do PT concordava plenamente. Fiquei pensando sobre a volatilidade das ideologias...
O que sobra hoje dos velhos conceitos de direita e esquerda? Bobbio lembra como foram perversos os efeitos do modo como se tentou realizar o ideal das esquerdas. A grandiosa utopia equalitária comunista, acalentada por séculos, traduziu-se em seu contrário na primeira tentativa histórica de realizá-la.
Uma espécie de ``utopia invertida". Mas o grande drama da desigualdade permaneceu em toda sua gravidade, insuportabilidade e periculosidade para aqueles que se consideram satisfeitos. Bobbio conclui que o comunismo histórico faliu, mas o desafio por ele lançado permaneceu.
Segundo Dino Confresco, o núcleo duro da esquerda permanece: a libertação do homem do poder injusto e opressivo. O homem de direita seria aquele que, acima de tudo, preocupa-se com a defesa da tradição e da herança. Na realidade, com o advento das novas direitas e novas esquerdas, esse conceito parece-me frágil demais.
Prefiro ficar com Bobbio. Ele parte do raciocínio de que os homens são, entre si, tão iguais quanto desiguais. Iguais em alguns aspectos e desiguais em outros. Do lado da esquerda estariam aqueles que consideram que os homens são mais iguais que desiguais. Que a maior parte das desigualdades são sociais e, portanto, elimináveis.
A esquerda estaria propensa a considerar que o homem é capaz de corrigir simultaneamente a natureza madrasta e a sociedade madrasta. Do lado da direita, estariam aqueles que acham que os homens são mais desiguais que iguais; de que as desigualdades são naturais e, enquanto tal, inelimináveis. E, mais do que isso, são úteis na medida que promovem a incessante luta pela melhoria da sociedade. Gosto dessa abordagem. Ela abre espaços comuns.
No momento em que o país é empurrado para a modernização e para a reforma do Estado, tarefas indispensáveis, mas que agravam no curto prazo o problema social, em vez de esquerda e direita ficarem a conflitar pelo necessário e inevitável, melhor será que percorram juntas a ampla agenda da busca de alternativas eficazes para a diminuição da miséria e a criação de programas sociais de emergência fundamentais para aliviar a dor da transição.
Caso contrário ambas se transformarão, de fato, nas caixas vazias de Sartre. É imperioso preenchê-las com a matéria-prima básica à condição humana: capacidade de se indignar diante da pobreza, um mínimo de responsabilidade social e algum traço de generosidade. Qualidades que, por razões comuns e diversas, são encontradas em algum grau da esquerda à direita. A situação está a exigir um pouco mais do que perder alguns anéis para manter os dedos.

Texto Anterior: A arte de pescar
Próximo Texto: Transporte em Salvador; PFL; Zumbi
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.