São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Unanimidades burras, burrices divergentes

MARCELO LEITE

Já se disse que toda unanimidade é burra e também que a função do jornalismo é dissolver unanimidades. Nunca se esteve tão longe disso. Hoje, aderir ao consenso -em Washington, Ibiúna ou qualquer periferia- tornou-se sinônimo de modernidade e inteligência, quando não de esperteza.
Os jornais dão diariamente prova disso. Tome-se a denúncia do corporativismo estatal, que no imaginário hegemônico ocupa o lugar antigamente destinado à saúva. Abundam as reportagens sobre os privilégios e amarras que a praga acarreta -fatos inegáveis-, mas o senso crítico desses trabalhos parece inversamente proporcional a seu número.
Uma das pedras de toque é a estabilidade do funcionalismo. O filósofo Renato Janine Ribeiro até que foi brando com a imprensa ao apontar a reprodução mecânica do lugar-comum, em artigo publicado terça-feira na pág. 1-3 da Folha:
``Entre os consensos automáticos que o discurso dos economistas e empresários, por um lado, e a simplicidade da imprensa, por outro, têm montado está o ataque à estabilidade do funcionalismo público. Como se conhece a ineficiência do Estado brasileiro, até parece ser essa a saída para as mazelas do setor. Mas as coisas não são tão simples (...)".
As coisas nunca são tão simples. Jornais e revistas deveriam servir para mostrar isso, mas caminham no sentido oposto.
Privilégios
Uma tecla sempre batida -nem por isso menos verdadeira- é a dos salários e benefícios privilegiados dos funcionários de estatais. Como interessa ao governo acuar certas corporações perante a opinião pública, de tempos em tempos surgem nas páginas dos jornais obscuros estudos, relatórios e listas. É óbvio que os ``técnicos" apresentam as informações da maneira que lhes interessa, mas isso não parece ser problema para os jornais agraciados.
Na semana passada, por exemplo, funcionários de bancos estatais federais procuraram o ombudsman para questionar os dados de uma reportagem publicada dia 9, na pág. 1-9 da Folha, sob o título ``Banco oficial paga duas vezes mais". Eles punham em dúvida que algum funcionário recebesse o valor apontado como média mensal de ``rendimentos" no Banco do Brasil (R$ 5.197), mais que o dobro em relação a um banco privado como o Bradesco (veja reprodução da tabela).
Esclareci que ``rendimentos", no caso, não era sinônimo de salário, que a explicação constava do próprio quadro e que os mesmos critérios tinham sido usados no caso do banco privado. Um dos reclamantes retorquiu que a explicação não ia ser notada e que todo mundo ia entender que o salário no BB era de R$ 5.197.
Desconfio de que ele pode estar certo e de que seria essa, justamente, a intenção de quem divulgou o levantamento.
CUT estatal
Outro tema de predileção da Folha é a influência do setor estatal na Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ela cumpre a função de demonstrar ``com números" a tese de que a central deixou de ser o agente de modernização forjado nas metalúrgicas do ABC para se tornar a vanguarda do atraso que vegeta em empregos públicos. É certo que essa idéia encerra muito de verdade, mas não toda a verdade.
Para dar maior verossimilhança ao maniqueísmo, talvez, o jornal recorreu no dia 4 a uma distorção primária na apresentação de informações. Atente para a reprodução do gráfico publicado na pág. 1-14 daquele domingo: os assalariados da base da CUT no setor privado foram desmembrados em dois bonequinhos (indústria e serviços), enquanto o do setor público, indiviso, tinha sua estatura artificialmente amplificada.
Um detalhe? É. Mas detalhe tanto mais grave por ter sido publicado no mesmo dia em que a manchete da Folha provocava alarme com uma entrevista do líder cutista Vicentinho (``CUT ameaça deflagrar greves após a derrota"). Respondendo a uma pergunta específica sobre o peso do Estado na central, o sindicalista deu na pág. 1-10 informação incompatível com os 41% citados na pág. 1-14:
``O setor público e estatal, juntos, significam 25,5%. O setor privado, 73,9%. Isso mostra que eles não são maioria."
Note que os dois dados provêm da mesma fonte, a CUT. Foram apresentados ao público no mesmo dia, sem que o jornal se desse ao trabalho de esclarecer a divergência. Em outras palavras: o leitor que se vire.
Prevenção e precipitação
Dos exemplos acima, pode-se concluir que os jornalistas erram, confundem e simplificam porque aderem a esquemas mentais predominantes. Sucumbem à prevenção, que o filósofo René Descartes (1596-1650) identificou em seu famoso ``Discurso do Método" como uma das duas fontes do erro.
A outra é a precipitação, que também costuma contaminar o trabalho jornalístico. Se para qualquer ser humano parece natural a necessidade de queimar etapas, para jornalistas premidos por horários rígidos de fechamento isso se torna um constrangimento estrutural -e também uma desculpa ideal para oferecer trabalhos incompletos e mal-acabados aos leitores.
Repórteres e redatores, individualmente, descuidam do trabalho penoso de estabelecer e remontar os elos entre as informações que coletam, ou nas quais tropeçam. A organização industrial das redações implica a crescente descoordenação dos conteúdos (``unidades informativas", como se diz na Folha). Como resultado, os jornais perdem em inteligência e perspicácia.
Três casos recentes de informação insatisfatória, um de cada esfera de governo:

Na quinta-feira, reportagem no alto da pág. 1-11 (``Ruth pode ter 3,5 mi de toneladas de grãos") deu destaque exagerado para vagos temores de uma deputada petista quanto ao uso político de estoques reguladores do governo. Na crítica interna da edição, apontei outro exagero -consagrar no título a hipótese impensável de que o programa Comunidade Solidária torre os estoques reguladores até o último grão (as tais 3,5 milhões de toneladas).

No último domingo, o caderno TV Folha trazia entrevista com o governador paulista, Mário Covas, em que este se queixava da incapacidade da TV Cultura para gerar receita própria e citava vários valores, o mais alto deles R$ 1,629 milhão (1993). Dois dias depois, em carta ao Painel do Leitor, o ex-presidente da Fundação Padre Anchieta Roberto Muylaert contestava o governador com cifras muito superiores (1993: R$ 10,231 milhões). A confusão ainda permanece, porque o jornal não foi capaz de esclarecer a questão.

Na mesma terça-feira, a pág. 3-2 do caderno São Paulo trazia reportagem sobre despejo de 80 famílias na favela Nova Tietê, zona norte da cidade, para ceder espaço a obras do programa municipal de verticalização/urbanização conhecido como Projeto Cingapura. A prefeitura alegava que essas famílias tinham chegado havia menos de dois anos ao local e que dispunha de fotos aéreas como prova. Os despejados, por seu lado, apresentavam documentos que supostamente atestavam sua presença ali por prazo superior. Mais uma vez, o jornal foi impotente para dizer quem estava com a razão.
Como se vê, não é só na unanimidade que pode faltar inteligência.

Texto Anterior: OPINIÃO DA FOLHA
Próximo Texto: A MP desastrada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.