São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Um estilo firme e cortante

Para ela, o catolicismo tinha "salvado" sua infância

MARIA ERCILIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Mary McCarthy escreveu muito e bem, mas possivelmente sua melhor obra é aquela em que conta sua juventude: "Memórias de uma Menina Católica" (1957, lançadas no Brasil pela Companhia das Letras). "A Charmed Life", espécie de continuação deste livro, é muito inferior a ele.
"Memórias" é o documento de um começo de vida peculiar de uma mulher extraordinária. McCarthy ficou órfã aos seis anos, sofreu torturas dignas de um romance de Dickens nas mãos de uma tia-avó louca e foi resgatada aos onze por sua rica avó judia e pelo avô protestante.
Entre estas três religiões e variadas escolas e padrões de vida se deu sua formação moral. Um dos pontos altos de "Memórias" é o momento em que a pequena Mary finge perder a fé só para chamar a atenção na escola católica, num movimento cuidadosamente planejado. Ao discutir sua "crise" com um padre, percebe que, de fato, sua fé tinha desaparecido completamente.
Mas McCarthy creditava ao contato com a religião católica, num país predominantemente protestante, sua "salvação" numa infância atribuladíssima. "Eu me atirei com ardor naquilo, naquela vida sensual, e quando não sonhava casar com o pretendente do trono da França, sonhava ser uma freira carmelita".
E é dela uma das melhores frases que já se cunhou sobre a Igreja Católica: "Não é uma religião para leigos, pelo menos não para americanos leigos".
McCarthy se tornaria trotsquista. Mas é curioso como algumas lições aprendidas por ela no colégio ecoam em cartas a Arendt. "Não havia nenhuma idéia de igualdade na escola paroquial, e tal idéia me seria repugnante; igualdade, um brutal corte que uniformiza tudo, era como eu era tratada em casa. Igualdade era uma espécie de injustiça que as boas irmãs de St. Joseph não teriam tolerado", diz ela em "Memórias".
Já em carta a Arendt, afirma: "Tenho a sensação, talvez subjetiva, de que o verme da igualdade está corroendo não só os antigos alicerces sociais e econômicos como também a própria estrutura da consciência, demolindo as `distinções de classe' entre o sadio e o insano, o belo e o feio, o bom e o mau".
McCarthy resolveu o problema do entrelaçamento ficção/realidade numa autobiografia com interpolações reflexivas entre os capítulos. Seu estilo é firme e cortante, sem o menor tempo para sentimentalismos.
Termina-se o livro querendo saber que tipo de mulher se tornou a jovem fascinante de "Memórias". McCarthy tinha um senso de humor imbatível e, apesar de se descrever como "plain" (sem graça), foi muito charmosa.
O capítulo seguinte de sua vida pertence à história literária norte-americana. McCarthy casou-se quatro vezes. Um de seus maridos foi o renomado crítico Philip Rahv. Outro, o ainda mais famoso Edmund Wilson (que, ao que parece, batia nela).
Foi ela mesma uma crítica de teatro excelente, impiedosíssima. Satirizou Rahv em "The Groves of Academe". Fez o mesmo serviço com Wilson em "A Charmed Life". Escreveu oito romances. Entre eles, o excelente "O Grupo", sobre o tempo que passou na aristocrática universidade americana Vassar (que era então só para moças).
Quando Arendt foi acusada de se concentrar demasiado nas vítimas do Holocausto em seu livro "Eichmann em Jerusalém: Relato Sobre a Banalidade do Mal", Mary McCarthy saiu em sua defesa num texto furioso.
É histórica sua briga com a escritora Lillian Hellman, que a chamou de "romancista para moças". McCarthy retrucou num programa de TV, dizendo que Hellman mentia tanto que nem seus "es" e "mas" eram verdadeiros. Hellman a processou. Sabe-se lá como a história teria acabado, mas Hellman morreu antes do julgamento do processo (em 1984).

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