São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Hannah querida

MARY MCCARTHY

141 rue de Rennes
Paris 6ème
18 de junho de 1968

Hannah querida:
Estávamos fora -em Londres- quando sua carta chegou. Tentarei lhe telefonar hoje à tarde, mas enquanto isto escrevo mesmo assim. É inútil falar sobre o problema de coração de Heinrich sem ter mais informações. Estou muito preocupada com você, mas espero que seja desnecessário. Já faz tantos anos que você vive assim tremendamente assustada por ele. Lembro muito bem daquela vez na Wesleyan quando estávamos em Stonington. E do último outono em Castine. E entre uma coisa e outra. Ele é frágil, mas tem muita resistência; estou contando com isto. Ele tem se cuidado? Você poderá dar conta de cuidá-lo quando ele sair do hospital?
Obrigada pelo que diz a respeito do terceiro texto sobre Hanói. Estranhamente, foi um dos que mais trabalhei e que me inspirava menos segurança. Tenho a impressão de estar perdendo o contato com minha própria escrita, quero dizer, que não posso confiar, no caso desses artigos, em minha própria crítica isenta, em minha avaliação. Mas pode ser em parte devido às circunstâncias.
Foi estranho escrever sobre o Vietnã do Norte aqui, com o turbilhão e os ânimos exaltados (1). Hanói parecia tão longe -vários séculos. Também tive dificuldades físicas: o terceiro texto teve de ser enviado pelo teletipo da ``Newsweek", o que significa que o reli inteiro em letras maiúsculas como um telegrama.
Os acontecimentos aqui me abalaram. Hanói também me abalou, porém os daqui mais, por causa da maior proximidade com meu país, tanto em sentido figurado como literal. São questionados todos os nossos hábitos, posses, modo de vida, conjuntos de idéias e, acima de tudo, o nosso distanciamento crítico. Eu não reconhecera até que ponto era distanciada -ver acima.
O desempenho dos literatos parisienses foi simplesmente risível, a meu ver, e repugnante. Quero dizer, pessoas como Marguerite Duras integrando comitês revolucionários. E o grupo "Tel Quel" publicando manifestos dizendo que doravante toda literatura deve ser marxista-leninista (2).
A estória da ocupação do Hotel de Massa é uma pérola. Molière puro. Quando nos encontrarmos lhe contarei. Na verdade, houve um bocado de "tartufferie" (ou seja, hipocrisia piedosa) em todo o comportamento periférico. Mas não entre os estudantes, pelo menos não entre os que eu já conhecia ou conheci durante a "revolução". Não dá para saber se essa palavra deve estar entre aspas ou não, e talvez seja esta a tragédia. E houve uma tragédia para os jovens, talvez para a França, com interlúdios bufões. A maioria dos filhos de nossos amigos estava na luta, inclusive um de 13 anos. Felizmente nenhum ficou ferido, nem foi preso. Pelo menos ainda não, como eles dizem em Hanói.
O Odéon estava maravilhoso (3). Agora acabou e obviamente não poderia ter durado. Nos últimos dias, dizem eles, já estava se transformando num espetáculo para turistas, embora nem tanto, a meu ver, como pensavam os estudantes "enragés". Ir ao Odéon tornou-se o "programa" para depois do jantar ou domingo à tarde, mas muita gente que ia ficava muito comovida.
O grupo que ocupou o Odéon parecia mais anarquista, em sentido libertário, que os grupos dominantes na Sorbonne. A "liberté de la parole" (liberdade de expressão) era respeitada a um ponto fantástico e havia gente de todas as idades e posições sociais discutindo questões: jovens trabalhadores, homens de negócio, um coronel do exército, professores de colégio, um garçom de bar, jovens donas de casa bonitas. Muitos deles teriam tido medo -e com razão- de pôr o nariz na Sorbonne, onde os que discordavam eram calados aos gritos e (ouvi dizer) expulsos.
O extraordinário no Odéon era a capacidade que tinham os jovens de manter a ordem, sem sombra de uso da força, e permitindo, ao mesmo tempo, total liberdade. O público aprendeu rapidamente a se autodisciplinar. Na Sorbonne, que era mais autoritária, a autoridade vivia sucumbindo; as pessoas fumavam, por exemplo, embora o "service d'ordre" implorasse para que ninguém fumasse; empurravam e gritavam. Pelo menos foi o que aconteceu na gigantesca concentração em que Sartre falou (não muito bem) -situação altamente inflamável, sem ar; eles não conseguiam abrir uma janela, porque as pessoas não deixavam passar, (e) houve uma correria do público para o palco. Foi um milagre ninguém ter ficado ferido aquela noite.
Os amigos me mostraram novas facetas de si mesmos durante aquelas semanas. Os estrangeiros tenderam a se agrupar e praticar a ajuda mútua. Stephen Spender agiu muito bem o tempo todo; estive frequentemente com ele. Acho que ele estava fazendo uma reparação por causa da CIA.
Para ele, engraçado, o problema moral girou em torno de sua casa na Provence -uma ruína que eles compraram e foram reformando aos poucos com o dinheiro, arduamente ganho, de suas palestras nos EUA; nos primeiros dias, decidiu que não era "dono" da casa e que, se a revolução a tomasse, tudo bem. Sempre que falava com algum estudante especialmente "enragé", e dizia-lhe mentalmente: "Sim, sim, pode ficar com minha casa!". Fez uma coleta para um grupo de americanos refratários ao alistamento, que encontrou totalmente isolados numa sala de uma das ``Facultés" e praticamente, pareceu-lhe, morrendo de fome; conseguiu que outras pessoas os visitassem.
Vassilikos foi bom e doce, muito triste por causa de sua correspondência; como exilado, dependendo de notícias, sofreu muitíssimo com a greve dos correios. Bondy teve uma boa atuação. E também dois jovens escritores holandeses. A maioria dos estrangeiros com quem eu me encontrava estava mais abatida e cética quanto aos resultados disso tudo que os franceses, pois estes, como disse Vassilis, confundiam seus desejos com a realidade (esta era uma das palavras de ordem). Jim esteve no Japão durante a maior parte da crise, de forma que fiquei solta aqui sozinha.
Não me encontrei com Cohn-Bendit, embora Stephen e eu tenhamos tentado. Mas a Sorbonne estava uma bagunça tremenda, especialmente a sala de imprensa. Uma amiga minha de Londres também o conhecia; a mãe dele era amiga da dela. Como você provavelmente leu, ele fugiu de Londres para Frankfurt. Se tentar voltar à França de novo, temo que desta vez a polícia o pegue.
A reação é, no mínimo, sinistra. Estão prendendo e deportando todo tipo de jovens estrangeiros -à mera suspeita. Ontem (ouvi dizer), a polícia estava jogando bombas de gás lacrimogênio contra turistas perto do Odéon. Sem mais nem menos. Embora as coisas estejam funcionando de novo, acho que ninguém está contente. Salvo a extrema-direita. Ainda não saí à rua depois que voltamos, mas ouço carros de bombeiros e ambulâncias indo e vindo. Minha própria impressão é de que De Gaulle cometeu um erro com sua rápida guinada para a direita; assustará o eleitor médio que ele esperava assustar com sua retórica anticomunista.
Todo mundo parece dar-se conta de que haverá uma crise econômica e ninguém está propondo solução alguma. A temporada turística acabou antes de começar -hotéis vazios e todas as reservas para a Riviera canceladas. Pelo menos é o que diz o rádio. É um país devastado. Eu mesma não vejo como pode começar de novo sem uma revolução. Mas de que tipo? Jim partilha esse pessimismo, se é que pessimismo é a palavra certa para presságio combinado com falta de simpatia pelo objetivo que visam todos os partidos políticos habituais: estabilidade, ou seja, uma volta ao "status quo ante".
E o que vai acontecer no nosso país? Se é uma escolha entre Humphrey e Nixon (4), concordo com a palavra de ordem estudantil francesa: "Elections: Trahison". Vamos estar em Catine em meados de julho. Fico feliz porque assim a verei.
Agora tenho de parar. (...) Mas gostaria de lhe dizer muito mais. E de receber notícias suas.
Com todo meu carinho, Hannah querida,
e meu carinho aflito para Heinrich -da parte de Jim também,
abrace-o por nós,
Mary

NOTAS
(1) As revoltas estudantis francesas, que começaram no campus da Universidade de Paris em Nanterre, desencadearam fechamentos de universidades e greves de solidariedade por parte de operários industriais e funcionários públicos no país inteiro. A rebelião de 1968 estava em pleno auge quando McCarthy retornou de Hanói.
(2) "Tel Quel", revista literária francesa, foi dos primeiros porta-vozes da teoria desconstrucionista.
(3) O Odéon, teatro subsidiado pelo governo no Quartier Latin, foi tomado pelos estudantes e se tornou o centro de um debate público permanente sobre o confronto com a autoridade tradicional.
(4) Lyndon Johnson anunciara em março que não se candidataria à reeleição; o senador Robert F. Kennedy fora assassinado em junho, após sua vitória nas eleições primárias da Califórnia, e a chamada Cruzada das Crianças do senador Eugene F. McCarthy não tivera um papel de destaque na convenção democrata. No final do verão, a escolha era entre o democrata Hubert Humphrey e o republicano Richard Nixon.

Traduções de SIENI CAMPOS

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