São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Um espectro que ronda o mundo

A idéia de igualdade torna a existência insuportável

MARY MCCARTHY

141 rue de Rennes
Paris 6e.
9 de junho de 1964

Hannah querida:
De fato, está mais do que na hora de lhe escrever. Perdoe meu silêncio, que não tem desculpa válida. Só o cansaço extremo, após a viagem aos EUA, e a leve depressão que o acompanhou. Piorou pelo fato de eu ainda não ter realmente retomado o trabalho, mas estar desperdiçando meu tempo com uma série de pequenas obrigações profissionais, literárias e outras, que, no entanto, têm de ser cumpridas. Esta semana é o imposto de renda: o prazo final para os residentes estrangeiros é 15 de junho.
Disse não a Jovanovich em relação ao livro sobre Jerusalém. Dado o estado de coisas descrito no parágrafo precedente, seria loucura pegar mais algum trabalho. O que realmente quero fazer (ou acho que quero) é começar outro livro -um romance. Ontem, contudo, quando finalmente sentei para pensar no assunto, dei de cara com um branco espantoso, como quando, no meio de uma palestra, você percebe que esqueceu o que queria dizer a seguir. Fiquei impressionada por não encontrar nada que quisesse dizer. Ou, mais precisamente, por não lembrar da pessoa (eu) que estava querendo dizer algo. Isto é, sob forma de romance ou mesmo de conto; conseguia pensar em artigos que gostaria de escrever, mas escrever artigos, nas atuais circunstâncias, seria uma evasão ou distração, como tagarelar alto para encobrir um silêncio social.
Bem, esses momentos ou longos minutos aterrorizantes passaram, caso contrário eu não lhe estaria escrevendo sobre eles. Lembrei lentamente de algo: mas é uma idéia, não uma situação concreta ou episódio que eu desejasse contar -que é como meus outros livros e contos sempre começaram. Exceto "O Grupo". No caso deve ter sido uma idéia também. Foi.
A idéia atual tem a ver com igualdade. Há muito tempo penso que este é o espectro que tem rondado o mundo desde o século 18. Ou, ao menos, tem me rondado a vida toda. Uma vez introduzida esta idéia na mente humana, a existência torna-se insuportável, e, no entanto, uma vez ali, nunca mais pode ser banida. As únicas pessoas que continuam felizes ou contentes são as que ainda não ouviram falar dela, por uma razão ou por outra -em ambos os extremos da escala social.
Os latifundiários incultos (e ainda existem uns quantos) que não têm consciência pesada, e os camponeses incultos (e ainda existem uns quantos) que não sofrem de inveja. Nenhum dos dois grupos questiona, por assim dizer, a maneira como Deus dispõe de Seus favores, quer lhes sorria ou os censure. Mas todos os demais estão só fingindo quando afirmam considerar a desigualdade natural. De ambos os lados. "Por que eu teria isto e ele não?" ou "por que ele teria isto e eu não?" Estas são perguntas muito antigas, é claro, da idade da história humana, mas antigamente podiam ser respondidas, mesmo respondendo-se que eram irrespondíveis, o que significa invocar o mistério do Destino. Mas ninguém mais acredita em Destino; equivale a dizer que hoje ninguém "aceita seu destino".
Suponho que fiquei mais obcecada por essas questões simplesmente devido ao sucesso recente -um número crescente de vestidos em meu armário, carro, viagens. Exposta aos ares do privilégio. O que ainda se pode desfrutar se for passageiro -um regalo. Mas não como o seu próprio ar-condicionado particular. Tudo isto toca o que você diz em seu livro "Revolution" sobre a compaixão.
Ao mesmo tempo, tenho a sensação, talvez subjetiva, de que o verme da igualdade está corroendo não só os antigos alicerces sociais e econômicos como também a própria estrutura da consciência, demolindo as "distinções de classe" entre o sadio e o insano, o belo e o feio, o bom e o mau. Para ser concreta, acho que me sinto culpada e constrangida na presença de um psicótico, como se tivesse de ocultar minha sanidade em nome da igualdade com ele. O mesmo diante de uma pessoa burra; fico mortificada ao conversar com ela, temendo dizer algo que lhe revele sua própria estupidez.
Na verdade, só fico feliz conversando com meus iguais superiores, embora, é claro, meus superiores possam sentir-se mortificados por mim. Em suma, cai-se numa espécie de círculo. Assim também, entre os jovens, ouço dizer, não usar drogas é fonte de vergonha para o não-usuário, e não se trata da mesma coisa que querer fazer o que os outros estão fazendo, que sempre foi o caso dos jovens. (...)
Suponho que você viu o texto sobre você no "Times Literary Supplement" (1). Sonia Orwell prometeu descobrir quem escreveu, mas até agora ainda não cumpriu. Pareceu-me uma obra particularmente ruim e feita por uma pessoa autenticamente estúpida. Eles queriam que eu respondesse, mas não tive ânimo; isto é, achei desanimador demais.
Hannah, tenho que lhe dizer o quanto lamento ter incluído Mozart e Haendel (2). Jim me avisou, e meu sistema interno de alerta também. Mas só por isso resolvi manter a menção, argumentando que me recusava a suprimir qualquer coisa -para não ser como eles, que nunca dizem a verdade se o inimigo puder usá-la contra eles.
É verdade que o efeito da leitura do seu "Eichmann" foi estimulante para mim, efeito próximo ao daquelas duas peças musicais, ambas referentes à redenção. Jim disse que meu texto estava muito infantil naquela passagem, e concordei, mas disse a mim mesma: "Tudo bem, não vou ocultar". Mas nem ele nem eu jamais pensamos que alguém usaria o trecho para mostrar que eu estava exultante com o assassinato em massa dos judeus. Mas isto nem me importa; o que realmente me importa é terem usado o meu texto para comprometer você. Por isto eu deveria ter sido mais cautelosa. Por favor me perdoe, se puder.
Chegamos aos EUA no dia 1º de julho. Com muita vontade de vê-la.
Com muito carinho para você
e para Heinrich,
Mary

NOTAS:
(1) Resenha de "Eichmann em Jerusalém, "The Times Literary Supplement", 30 de abril de 1964
(2) McCarthy escreveu em "The Hue and Cry": "Apesar de todos os horrores que contém, `Eichmann em Jerusalém' para mim foi moralmente estimulante. Confesso livremente que me deu alegria e eu também ouvi nele uma peã -não uma peã odiosa ao totalitarismo, mas uma ode à transcendência, música celestial, como a do coro final de `Fígaro' ou do `Messias'... O leitor `subiu' acima do terrível material do julgamento e foi mantido no alto para estudá-lo com sua inteligência".

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