São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Experiência da dor

EDUARDO JARDIM DE MORAES

O prestígio dado à figura do homo faber na modernidade acarretou o enorme desenvolvimento técnico dos séculos seguintes. Inicialmente, o critério que determinou este desenvolvimento fez com que se promovesse a produção de coisas que eram acrescentadas ao mundo. Ele se justificava na medida em que dele resultavam produtos. No momento seguinte, no entanto, a força contida neste processo, a sua própria produtividade, foi de tal forma impactante que sua importância passou a ser maior que a dos seus produtos. Neste momento da modernidade, a ênfase deslocou-se da questão "o que uma coisa é?" para uma outra relativa ao próprio processo da produção, o que significou que desapareceu a preocupação com o Ser, entendido como o que aparece e tem durabilidade, e surgiu o interesse exclusivo pelo movimento, um processo que engolfa todas as coisas.
Um sinal claro desta mudança de ênfase foi o surgimento, no século 19, das ciências da evolução. A evolução é uma categoria introduz um viés histórico-evolutivo no tratamento de todas as coisas, as relativas ao homem e à natureza. Diz Hannah Arendt: "A tremenda mudança intelectual que ocorreu em meados do século 19 consistiu na recusa de encarar qualquer coisa como é e na tentativa de interpretar tudo como simples estágio de algum desenvolvimento ulterior". Deu-se neste contexto, de novo, uma alteração no modo como estavam dispostas as experiências humanas, agora não mais consistindo na inversão da ordem tradicional pela qual a vita contemplativa cedia o lugar para a vita activa. A mudança, no caso, se fez no interior da vita activa. Está em foco um momento na história da modernidade em que a experiência da fabricação, determinante em seus primórdios, é invadida pelo labor. Por causa disto, a estabilidade do mundo ficou ameaçada.
A fenomenologia da vita activa de Hannah Arendt inicia-se com a distinção entre as atividades do labor e do trabalho. Ela foi imposta pelas circunstâncias do próprio desdobramento da era moderna. As distinções feitas na consideração da vita activa baseiam-se na maior ou menor aparência das várias atividades -na sua visibilidade. O labor é a mais privada e obscura das atividades. Os bens que dele resultam são também os menos duráveis. O que se obtém no processo do labor deve ser logo consumido. Bens de consumo não adentram o domínio do mundo, pois não têm a necessária durabilidade. Eles são feitos para serem absorvidos no processo vital.
O trabalho, diferentemente, constitui o mundo. Ele objetiva a produção de bens duráveis. A obra de arte constitui o caso extremo e mais puro do empreendimento do trabalho exatamente porque dela se espera uma durabilidade indefinida. Com as obras de arte, tem-se o cuidado para que sejam conservadas e continuem aparecendo em seu brilho. É possível que o trabalho possa ser feito no isolamento. Lembre-se de novo o fato de que o artista pode isolar-se para criar. No entanto, o que importa é que a coisa que foi criada em isolamento necessita ganhar visibilidade e que exista um público que a reconhece.
O passo seguinte da fenomenologia das atividades humanas destaca o âmbito da ação, identificado por Hannah Arendt com a política. A definição de política proposta por Hannah Arendt está claramente na contramão das concepções modernas, que costumam reduzi-la às tarefas administrativas ou fazê-la dependente dos interesses sociais. Em "A Condição Humana", a ação é caracterizada como a única das atividades que se passa exclusivamente entre os homens, em uma "teia de relações", já que não comporta a referência a qualquer resultado tangível como os produtos do trabalho. A ação esteve associada entre os gregos aos seus heróis, como é o caso de Aquiles, "o fazedor de grandes façanhas e de grandes palavras"; foi referida por Maquiavel às virtudes do príncipe; sobre ela, Hannah Arendt compôs o elogio fúnebre de Karl Jaspers.
Em cada um destes casos, a ação é acompanhada de certa luminosidade, que tem o poder de revelar um quem, uma personalidade. Por considerar a ausência de uma base material da ação política e a sua fugacidade -o fato de ela manifestar-se estritamente no brilho dos gestos e das palavras-, Hannah Arendt concluiu que ela é a atividade humana que mais depende da presença de espectadores que a vejam. A sua permanência repousa propriamente na possibilidade desta visão. Assim, a ação é a atividade em que a aparência ou a visibilidade têm o máximo de importância. Também pode-se compreender que ela é a única que tem a pluralidade dos homens como uma condição.
No ensaio sobre a crise na cultura, publicado em "Entre o Passado e o Futuro", lê-se que "o critério apropriado para julgar aparências é a beleza". As coisas podem ser consideradas do ponto de vista da sua utilidade para nós, como simples meios, tal como os produtos do trabalho e como tudo que está contido no universo da tecnologia; ou pode-se lidar com as coisas considerando-as na medida em que satisfazem nossas necessidades, como os bens que resultam do labor e como quase tudo nas sociedades de consumo; pode-se tratar das coisas como as ciências fazem, experimentando com elas, transformando-as, obtendo delas conhecimento. Na verdade, em todos estes casos, não se está levando em consideração a aparência das coisas. Hannah Arendt afirma, de forma contundente, que se poderia até mesmo arrancar fora os olhos ao se pretender reduzir deste modo o contato com a realidade. Apenas quando se aprecia as coisas em sua beleza é que elas aparecem em sentido próprio.
As considerações feitas por Hannah Arendt a respeito do juízo estético inspiraram-se na leitura muitas vezes retomada da "Crítica do Juízo", de Kant, em especial da parte que trata dos critérios que estão em jogo nos juízos de gosto, que expressam o contentamento com a beleza.
O primeiro destes critérios é o desinteresse. Está-se hoje acostumado, de forma equivocada, a associar a noção de desinteresse à de indiferença, com o sentido de retraimento da realidade. Em Kant, ao contrário, a idéia de desinteresse remete a uma experiência de abertura máxima, de total e emocionada expectativa. O prefixo "des" de "desinteresse" indica que dá-se aí uma suspensão dos interesses. Estes apresentam-se como pré-condições que determinam a parcialidade na apreensão de alguma coisa. Por exemplo, o homo faber considera o mundo nos limites da utilidade que tem para ele; o animal laborans, nos limites da sua necessidade vital. Hannah Arendt comenta este ponto do seguinte modo: "...para nos tornarmos cônscios das aparências, cumpre primeiro sermos livres para estabelecer certa distância entre nós mesmos e o objeto, e quanto mais importante é a pura aparência de alguma coisa, mais distância ela exige para sua compreensão adequada. Tal distância não pode surgir a menos que estejamos em condições de esquecer a nós mesmos, as preocupações, os interesses e anseios de nossas vidas, de tal modo que não usurpemos aquilo que admiramos, mas deixamo-lo ser tal como o é, em sua aparência".
A distância assumida pelo espectador para apreciar melhor coincide com a suspensão dos interesses mencionada pela "Terceira Crítica". Além disto, a lição a se extrair desta passagem com clareza a dimensão positiva do desinteresse: por ele dá-se uma abertura por onde a realidade aparece.
A experiência da dor que chamara a atenção de Hannah Arendt em seu esforço de compreensão da experiência totalitária constituía o caso extremo da situação de alienação do mundo. Agora, pode-se notar que a reflexão de Hannah Arendt sobre o juízo estético remete a uma experiência exatamente oposta. Se o máximo fechamento relativamente à realidade é experimentado na dor muda, a máxima abertura é dada na experiência do prazer entusiasmado e eloquente do espectador.

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