São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Experiência da dor

EDUARDO JARDIM DE MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em uma entrevista que concedeu em 1964 à televisão, Hannah Arendt se referiu à motivação que a teria conduzido ainda muito jovem à filosofia. "Eu tinha que compreender", explicava ela. "Não que eu não amasse a vida", mas "se eu não puder estudar filosofia estou perdida".
A compreensão é o empreendimento pelo qual, ao pensar, busca-se superar o sentimento de estranhamento do mundo. Ela é promessa de reconciliação pela qual aprende-se "a lidar com o que irrevogavelmente passou" e tem a ver com a capacidade de contar histórias. Para Hannah Arendt, judia alemã, este empreendimento vinha marcado por uma dramática urgência. A experiência política central do século foi a do totalitarismo.
Em 1951, foi publicado "As Origens do Totalitarismo". O livro pretendia retratar a terrível novidade do evento que se passara na Alemanha e na União Soviética, a ponto de não se dispor de categorias para pensá-lo. Ocorre que se não se encontram na tradição da teoria política, que discorreu frequentemente sobre as tiranias e a ditaduras, os marcos necessários para situar o "domínio total", este continua sendo algo de humano, devendo haver entre as experiências do homem alguma que tenha sido especificamente destacada e explorada politicamente para constituir a sua base.
A solidão é a experiência da vida humana que inspirou a forma de governo ``cuja essência é o terror e cujo princípio de ação é a lógica do pensamento ideológico". A solidão faz parte da vida de todo homem. Sua mais radical manifestação dá-se na experiência da dor. Então, é como se não só não se sentisse a companhia dos semelhantes, mas como se não se reconhecesse o mundo que circunda. A dor isola da companhia dos outros e limita a visão da realidade do mundo. A solidão não significa estar a sós. Pode-se estar isolado, isto é, sem contato com a teia das relações humanas, sem se sentir o abandono da solidão. Estar a sós constitui até mesmo a condição para a realização de atividades como a arte, quando o envolvimento com a feitura de uma obra é de tal intensidade que dispensa a efetiva presença dos outros. O isolamento tem sido vivenciado politicamente nas situações de tirania, que supõem a quebra das relações políticas. A solidão é mais radical, na medida em que implica, além da perda das relações políticas, a interrupção do contato com as coisas do mundo. O totalitarismo foi o primeiro regime político fundado na experiência da solidão.
As coisas objetivadas pelos homens, o seu mundo, são ao mesmo tempo uma referência comum, uma mediação que possibilita que se relacionem e o que garante que haja entre eles um espaço, um elemento de separação. A supressão do mundo nos regimes totalitários promove certamente a ruptura das relações entre os homens. No entanto, isto é feito não para isolá-los, mas, pelo fato de se dar a eliminação do espaço entre eles, para comprimi-los uns contra os outros. Compreende-se assim a vinculação entre o totalitarismo e as sociedades de massa.
Dois acontecimentos marcaram o início da era moderna: a Reforma e a invenção do telescópio. De algum modo, os dois relacionam-se com o fenômeno característico do período -a alienação do mundo.
O exame que é feito da Reforma não a considera de um ponto de vista religioso, mas pretende indicar as suas repercussões econômicas. Também para Hannah Arendt a Reforma está na base do moderno capitalismo. Em função dela procedeu-se à expropriação dos bens da igreja e consequentemente a enorme população camponesa foi arrancada do lugar em que vivia e abandonada com a única coisa que lhe restara -sua força de trabalho. A liberação desta força, provocando um aumento da produtividade e a formação de um excedente que não era aproveitado na aquisição de novas propriedades, mas investido exclusivamente na obtenção de mais riqueza, constituem a base das transformações econômicas específicas da modernidade.
A originalidade desta interpretação e o ponto de discordância com a interpretação weberiana está em que, para Hannah Arendt, o acúmulo desta riqueza não teria sido aproveitado na produção de bens duráveis. O que ocorreu é que a perda do mundo, que havia sido a marca do processo de desapropriação, passou a determinar o modo de vida desde então. A população tinha sido arremessada a um estado de miséria em que o que contava era só a manutenção da vida. O traço característico desta situação, que consiste na valorização estrita dos bens que servem para serem consumidos imediatamente no processo vital, impregnou o modo de ser de toda a experiência moderna.
Hannah Arendt indica que tal situação acarretou uma disposição nova do conjunto das atividades do homem. O labor, atividade pela qual a vida é sustentada, foi considerado tradicionalmente a menos nobre das atividades. No labor está-se entretido apenas com a dimensão biológica do humano e é por este motivo que seu agente é chamado de animal laborans. O labor é a mais privada das atividades, tendo sido até mesmo costume torná-lo como algo que se passa dentro do domínio doméstico. Na medida em que se atém ao propósito de sustentar a vida, elaborando coisas que devem ser logo consumidas, o labor não colabora na construção do mundo ou na sua permanência. O que ocorre no contexto moderno é que os critérios do labor impuseram-se a todas as atividades.
Isto se deu de forma mais evidente na ascensão da figura do social. A sociedade é uma forma de organização humana tipicamente moderna, em que os vínculos estabelecidos têm por base a posição no processo do labor. São as sociedades de trabalhadores, os quais já não se dão conta do valor do produto que elaboram, mas encontram-se empenhados no processo produtivo apenas para sobreviver. É clara a dimensão de alienação do mundo contida neste quadro. Desaparece a possibilidade de referir-se à existência de coisas reconhecidas objetivamente e de dispor-se de critérios que permaneçam.
O tema da alienação do mundo foi considerado em "A Condição Humana" também com relação ao evento da invenção do telescópio. A referência à descoberta do telescópio ganha relevo ao mencionar-se o seu uso por Galileu. Com efeito, foram as observações feitas no novo instrumento que trouxeram a confirmação da teoria heliocêntrica. O fundamental, no caso, é que o telescópio trouxe um desmentido à percepção dos sentidos e que isto determinou uma alteração radical no modo como se concebia a realidade.
A idéia da verdade foi entendida, desde os antigos, com base na confiança depositada nos sentidos. Sempre se aceitou que estes tinham uma natural capacidade de receptividade das coisas. A pura apreensão da verdade era tida ainda como uma forma do olhar. O que ocorreu modernamente é que um instrumento veio demonstrar que não se devia confiar no testemunho dos sentidos para apreender-se a realidade, pois, como disse Descartes, "é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
A afirmação de Descartes indica, para Hannah Arendt, que um novo ponto de partida estava sendo definido para o pensamento da modernidade. Ao contrário da confiança nos sentidos, impunha-se como experiência primeira e mais significativa duvidar de tudo. Descartes também propôs o roteiro especificamente moderno de superação desta experiência inicial, que consistiu no apelo à introspecção. Já que não há nenhum dado em que possa confiar, a consciência deve voltar-se para si e investigar seu próprio conteúdo, pois, então, ao menos uma certeza pode ser alcançada -a de que, ao duvidar, eu penso e, ao pensar, existo ao menos como coisa pensante. A importância atribuída por Descartes à introspecção determinou os rumos do pensamento moderno. O recurso a ela havia sido concebido como meio de superação das incertezas provocadas pela desconfiança nos sentidos. No entanto, a partir dela não mais se teve a garantia de que, ao referir-se às coisas objetivas, não se estivesse apenas referindo a uma projeção da consciência.
A mentalidade moderna, em suas primeiras manifestações, comportou o desprestígio da contemplação e a valorização da capacidade humana da fabricação como fonte do conhecimento. Uma vez que não se pode conhecer o que é dado aos sentidos, ou alcançar a realidade de alguma coisa que seja independente do ponto de vista do sujeito, pode-se esperar conhecer aquilo que é fabricado pelo homem.

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