São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Modos de percepção e abstração em Espinosa

LIVIO TEIXEIRA

Já no início de nossas atividades junto à Cadeira de História da Filosofia, como assistente do prof. Jean Maugué -cujo nome aqui declinamos com respeito e admiração, em testemunho do muito que lhe devemos-, quando, em seminário, líamos com os alunos a obra de Espinosa, ocorreu-nos que a doutrina espinosista dos modos de percepção, ou dos gêneros de conhecimento, levantavam algumas questões interessantes.
Em 1952, ao tomar novamente a filosofia de Espinosa como tema de estudo para uma de nossas classes, reiterou-se em nosso espírito aquela antiga impressão.
Os comentadores que tínhamos em mão não resolviam certas dúvidas relativas à natureza de cada um dos modos de percepção ou, mais precisamente, não apontavam com clareza a diferença essencial que existe entre a Razão e a Intuição. Talvez porque, sendo velha a história dos três graus do conhecimento, pareceu-lhes dispensável o demorarem-se em sua nova edição espinosista.
Em Espinosa, porém, estávamos convencidos, esta velha história tem um sentido novo que é necessário compreender, para compreender o lugar da doutrina na metafísica e na moral do filósofo. O fato de ela encontrar-se nas três obras fundamentais de Espinosa é já uma indicação de sua importância.
Este trabalho, que resulta de nossos esforços para esclarecer o assunto, pretende mostrar que tal doutrina é estrutural. A ela se prende todo o sistema espinosista. Esperamos também que a explicação da natureza e lugar dos diversos modos de percepção seja suficiente para mostrar porque ligamos a esse estudo o do conceito espinosista da abstração.
A respeito de tudo, chegamos a um certo número de conclusões, que apresentamos aqui à guisa de teses.
Eis, em resumo, o que pretendemos demonstrar:
1 - Espinosa parte do exame dos modos de percepção porque não há outros "dados", a não ser o conteúdo da consciência. Não há aqui indagação sobre como as idéias que se encontram em nosso espírito correspondem à realidade exterior a elas, ou se as idéias que se encontram em nós correspondem a algo existente fora de nós.
O primeiro seria o ponto de vista da filosofia tradicional, que via nos dados sensíveis a matéria do conhecimento do mundo exterior, pois que considerava tais dados como a prova da existência do mundo exterior; o segundo, o ponto de vista cartesiano em que, sendo o conhecimento uma criação da mente, uma descoberta da razão, independente dos dados dos sentidos, ocorria perguntar como essa criação da mente era conhecimento do mundo, e mesmo indagar primeiramente se o mundo existe.
Espinosa, já de posse das idéias fundamentais de sua metafísica, entre as quais a que mais tarde será a incomunicabilidade dos atributos, limita-se à análise do próprio pensamento, do conteúdo da própria consciência. Na análise dos dados da consciência, e sem sair do pensamento, encontrará a realidade toda, mesmo aquela que não é pensamento.
2 - Essa análise se encontra nos tratados sob a forma do estudo dos "modos de percepção". Os resultados dela são os seguintes:
Classificação dos dados da consciência em três categorias principais: 1º) As idéias das afecções do corpo e as da imaginação ligadas a estas. Na linguagem de Espinosa são as idéias dos modos finitos. 2º) As idéias que nos vêm do raciocínio, ou da razão, ligadas aos modos infinitos. Elas são adequadas, pois que claras e distintas, mas não nos dão a essência das coisas. São as "noções comuns". 3º) As idéias que nos dão a realidade, pois vêm de uma identificação da mente com o concreto, o real. Nisto consiste a intuição. Se a intuição é do ser perfeito, dele podemos deduzir, sempre dentro do real, todas as coisas, como na "Ética".
A não partirmos de Deus, o único modo de nos pormos no real é partir exatamente da realidade dos nossos pensamentos. A análise deles, a descoberta dos diversos modos de percepção e do melhor deles -a intuição- nos conduz a Deus também, como no "Tratado da Reforma do Entendimento". O aprofundamento da realidade do pensamento nos conduz "pela mão" ao conhecimento da realidade total -Deus.
3 - Conquanto o termo "abstração" não seja frequente nos textos que vamos estudar, a idéia da abstração está sempre presente na mente de Espinosa, como algo que é um defeito do senso comum e um embaraço ao pensar correto, contra o qual mesmo os filósofos devem precaver-se.
Parece-nos que certos aspectos importantes do pensamento espinosista se esclarecem grandemente quando tomamos isso em consideração.
Para Espinosa, a noção de abstração está ligada à sua doutrina dos modos de percepção e à sua metafísica. Conhecer a realidade é conhecer o todo. Só conhecemos a parte a partir do todo ou integrada no todo. Toda vez que não ligamos ao todo qualquer noção, ela se transforma em abstração. Abstrair é querer compreender a parte sem o todo. Ou melhor, é atribuir realidade ao que é parcial, ao que não se explica por si, nem existe por si. Daí vêm todos os equívocos das filosofias que não a do próprio Espinosa. Há abstrações de dois graus:
1º) As que dizem respeito às sensações e imaginações. Nisso o espírito atribui realidade ou substancialidade às coisas do mundo material e também aos estados de alma que supõe ser testados de uma substância anímica. São estas, naturalmente, as abstrações mais distanciadas da realidade, porque o corte entre elas e a origem das coisas foi feito à maior distância possível. Estas abstrações é que constituem a matéria de todas as filosofias que partem dos dados sensíveis, como a de Aristóteles, por exemplo. As idéias gerais, que constituem para o aristotelismo a ciência, não passam de produtos extremamente abstratos e distantes da realidade substancial, portanto distantes da verdade.
2º) As que dizem respeito aos dados da razão.
Há "seres de razão" que estão mais próximos da realidade que as idéias tiradas dos dados sensíveis: são as abstrações que se encontram nas percepções do segundo gênero. Do plano da razão são as noções de verdade e erro, de bem e de mal, toda vez que se atribui a essas noções uma realidade qualquer, bem como as noções de transcendência divina, de alma, de entendimento, de vontade, de movimento e repouso, toda vez que se atribui a elas uma realidade substancial ou quase substancial.
É esse o erro da filosofia de Descartes, a qual, sem dúvida, Espinosa tem em mente refutar em suas noções fundamentais de alma, de extensão, de vontade independente do entendimento, de Deus criador e, também, no que se refere à dúvida metódica, à hipótese do Deus enganador, noções todas inadequadas, segundo Espinosa, que provêm do fato de ter Descartes atribuído realidade a abstrações deste segundo grau.
4 - A análise dos dados da consciência, quando feita de acordo com o princípio de que a parte só se explica pelo Todo e de que não há realidade e substancialidade senão no Todo, ao contrário, nos leva diretamente a Deus. Não podemos conhecer-nos a nós mesmos, isto é, aprofundar o conhecimento das capacidades e propriedades do nosso entendimento, sem chegar a Deus. Nesse provimento, o que era abstração torna-se parte decorrente da realidade, por ela explicada na sua essência e na sua existência.
A diferença que há entre o "Tratado da Reforma do Entendimento", de um lado, e o "Breve Tratado" e a "Ética", de outro lado, é que estes dois últimos partem de Deus, do Ser Perfeito, numa ordem que é a ordem natural para a compreensão da realidade. Ao passo que o "Tratado da Reforma do Entendimento", supondo difícil a compreensão desta ordem natural, parte da análise do pensamento, do estudo dos dados da consciência, para mostrar que estes não podem compreender-se sem Deus; sem Deus, tornam-se abstrações. E, na medida que compreendemos isso, conduzem-nos a Deus.
5 - Mas é de notar que a própria "Ética" apresenta um duplo movimento, por assim dizer. Porque, partindo de Deus, na Primeira Parte, e passando ao conhecimento da alma humana a partir de Deus, na Segunda Parte, na Terceira Parte passa a tratar da origem dos afetos de um outro ponto de vista, que corresponde ao primeiro gênero de conhecimento, isto é, à imaginação; na Quarta Parte trata da escravidão da alma num plano em que se encontra o conhecimento do primeiro gênero e também o do segundo, que sem o terceiro, isto é, a visão do todo, é ainda escravidão; finalmente, na Quinta Parte o segundo e o terceiro gêneros se apresentam unidos para assegurar a liberdade do homem.
Desse modo, vê-se exatamente a posição do segundo gênero de conhecimento: enquanto se conserva no plano do abstrato, sem ligar-se ao terceiro gênero, é ainda elemento de escravidão; mas, visto à luz do terceiro gênero, é já elemento de libertação.
Estas idéias, que pretendemos pôr em evidência por uma análise de textos do "Tratado da Reforma do Entendimento", do "Breve Tratado" e da "Ética", parecem-nos importantes no sentido de demonstrar que a estrutura das três obras principais de Espinosa, e mesmo a sua filosofia, muito se esclarecem com o estudo dos modos de percepção em suas relações com a doutrina do abstrato e do real.
É claro que, em uma tese de concurso, que se destina a ser examinada por banca de especialistas, não julgamos necessário expor todas as doutrinas de Espinosa que se relacionam com o assunto, como deveria ser se se tratasse de trabalho de outro gênero.

``Apresentação" do livro "A Doutrina dos Modos de Percepção e o Conceito de Abstração na Filosofia de Espinosa", tese de 1954 de Livio Teixeira, até hoje inédita em livro e que será lançada pela Brasiliense

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