São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Profecias ilusórias do progresso

BIA ABRAMO
DA REPORTAGEM LOCAL

Pierre-Jules Hetzel, o editor de Júlio Verne, tinha razão em recusar o manuscrito de ``Paris no Século 20". Para Hetzel, citado por Piero Gondolo della Riva (que recuperou o texto em 1986 e cujo prefácio original foi publicado na edição brasileira), não há na obra ``nem uma única questão de futuro sério resolvida, uma crítica que não pareça um ataque já feito e refeito". Uma observação à margem do manuscrito, também citada no prefácio, toca numa questão fundamental: ``Hoje, ninguém acreditará em sua profecia." Isso na década de 60 do século passado.
Nesta obra da juventude, escrita entre 1863 e 1870, posterior a ``Cinco Semanas em um Balão" e anterior a ``Capitão Hatteras", Verne (1828-1905) se embrenha em uma espécie de ficção sociopolítica. Esquece a aventura, a imaginação sem limites, a vontade de desvendar mundos inexplorados e se lança na árdua tarefa de projetar o mundo cem anos à frente.
Verne ainda surpreende o leitor do século 20 -adulto ou infantil- pela precisão e pertinência em suas antecipações relativas a máquinas, engenhos e artefatos. Com aparência falsamente divinatória, essa capacidade de prever e descrever o que estava por vir provinha não do fato de Verne estar à frente de seu tempo, mas justamente do seu contrário.
``Paris do Século 20" mostra como Verne era um homem entranhado em seu tempo. Tão impregnado estava pela euforia das descobertas, pelas maravilhas proporcionadas pela revolução científica do século 19, que ele, ávido leitor de boletins de sociedades científicas, pôde pensar adiante daquilo que estava diante de seus olhos, em todas aquelas promessas mecânicas, hidráulicas e elétricas que se anunciavam. Verne conhecia tão profundamente seu mundo que a partir dele entrevia os próximos.
É pelo mesmo motivo que Verne fracassa miseravelmente em outro sentido. Quando tenta imaginar o futuro das relações sociais, das instituições, do imaginário, enfim, tudo o que não tenha engrenagens nem arruelas, ele pensa com o espírito de seu século. Para Verne, a cultura e a sociedade iriam seguir o mesmo caminho das máquinas e das instâncias que as controlam.
A equação de produtividade e eficiência se estende para a escola, para as relações humanas e até para a identidade sexual. A lógica comercial e empresarial impera a tal ponto que eliminou tudo o que é inútil para o bom funcionamento dessa imensa fábrica que se tornou o mundo, incluindo aí guerra, exército e diplomacia. O brilho do progresso é tanto que provoca em Verne uma cegueira: duas guerras mundiais e dezenas de conflitos locais separam a Paris de Verne da Paris real na década de 60.
Nessa Paris de ``cem mil lanternas", um jovem poeta, Michel Dufrénoy, luta para sobreviver e se adaptar a esse mundo árido, onde a arte morreu e as mulheres ``passaram para o gênero masculino e hoje não valem o olhar de um artista nem a atenção de um amante". Os subversivos, para Verne, serão aqueles que, como o tio Huguenin e Quinsonnas, as almas gêmeas de Dufrénoy, cultivarão a literatura, a música e o amor, tal e qual no século 19.
Avançado na ciência e conservador na compreensão do gênero humano, Verne profetizou um mundo congelado no passado.

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