São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Querida Mary

HANNAH ARENDT

Chestnut Lawn House
Palenville, NY
20 de agosto de 1954

Querida Mary,
Sua carta foi uma verdadeira alegria. Só ao recebê-la notei que a estivera esperando. Mas vou direto ao centro do assunto, deixando o resto para depois.
A reflexão indecisa ou indecisão reflexiva de intelectuais -Seu Exemplo: por que eu não mataria minha avó se quisesse? No passado, esta e outras perguntas semelhantes eram respondidas, por um lado, pela religião e, por outro, pelo senso comum. A resposta religiosa é: porque você vai para o inferno e a danação eterna; a resposta do senso comum é: porque você mesmo não quer ser assassinado.
Nenhuma das duas respostas funciona mais, e não só por causa das respostas específicas -ninguém mais acredita no inferno, ninguém tem tanta certeza de que não quer ser morto, nem de que a morte, mesmo violenta, é realmente tão ruim-, mas porque suas fontes, a fé, por um lado, e os juízos do senso comum não fazem mais sentido.
A resposta filosófica seria a de Sócrates: já que tenho de viver comigo, e sou, na verdade, a única pessoa da qual nunca poderei me separar, a única cuja companhia terei de suportar para sempre, não quero me tornar um assassino; não quero passar a vida na companhia de um assassino. Esta resposta não serve mais porque hoje dificilmente alguém vive sozinho; se está sozinho, está solitário, isto é, não está junto consigo. (Saber se, nessas circunstâncias, alguém é capaz de estar junto com outras pessoas, é outro assunto.)
Estou completamente de acordo com você em que todas essas pessoas se comportam como caricaturas de filósofos porque foram postas numa situação na qual, ao longo de toda nossa história, apenas os filósofos ousaram correr o risco de se colocar. A resposta socrática nunca funcionou realmente porque essa vida a sós em que se baseia a resposta é a vida do pensador por excelência: na atividade do pensamento, estou junto comigo mesma -nem com outras pessoas nem com o mundo como tal, como é o caso do artista.
Nossos amigos, ansiando por "informação" filosófica (algo que não existe), não são, de modo algum, "pensadores", nem estão dispostos a entrar no diálogo do pensar consigo mesmos. A resposta socrática também não ajudaria. Ajudar aqui significa apenas: podar a discussão.
Quanto ao tipo de argumento que está sendo levantado, ele depende, mais que desta atitude geral, de diferentes tradições nacionais, criação e assim por diante. Acho que Dwight é um bom exemplo do tipo de americano anglo-saxão que se pode razoavelmente esperar que alguém seja.
Foi entre os filósofos ingleses que a modernidade apareceu disfarçada de argumentos do senso comum, isto é, que se distorceu o senso comum e sua qualidade sensualista, apresentando-o como uma forma de raciocínio muito específica que Hobbes, o maior de todos esses mestres, chamou de "calcular consequências".
É o que Dwight faz: ele parte de algum pressuposto que não costuma revelar, e no caso não poderia revelar, e então passa a "calcular as consequências". No final o resultado é o que ele acha que a verdade é. A falácia é simples: qualquer tolo pode lhe apontar o pressuposto, partir de uma hipótese diferente e chegar a um tipo diferente de "verdade".
Nesta tradição, a dúvida que você menciona é apenas um engodo: não é a dúvida que inicia a discussão, de forma alguma, mas o pressuposto. Isto é muito diferente do tipo francês de modernidade, no qual a dúvida cartesiana domina e permeia tudo que se segue.
O que a tradição francesa e a inglesa têm em comum, e que me parece ser a raiz da modernidade, é a desconfiança em relação aos sentidos, que provavelmente foi resultado imediato das grandes descobertas das ciências naturais, que demonstraram que os sentidos humanos não revelam o mundo tal como é, mas, ao contrário, só induzem os homens em erro. Disto decorreu a perversão do senso comum, ou, antes, as apreensões, quanto a sua qualidade sensualista, ou seja, que o senso comum (``le bon sens") é uma espécie de sexto sentido através do qual todos os dados dos sentidos particulares, fornecidos pelos cinco sentidos, são encaixados num mundo comum, um mundo que podemos partilhar com outros, ter em comum com eles.
Em outras palavras, senso comum era a instância de controle dos erros possíveis dos outros cinco sentidos. A vida média transcorre num mundo dado pelos sentidos, e é controlada e guiada pelo senso comum. Se este senso comum se perder, já não haverá mais mundo comum, nem sequer aquele mundo do qual o filósofo insistirá em ausentar-se temporariamente e para o qual deve retornar.
A perversão do senso comum começou quando se supôs que não se tratava de um sentido constitutivo do mundo comum, mas de uma faculdade que todos temos em comum. Esta é a faculdade lógica, o fato de que todos diremos unanimemente: dois mais dois são quatro. Mas, embora possamos tê-la em comum, esta faculdade é inteiramente incapaz de nos guiar no mundo ou de apreender o que quer que seja. Apenas frisa a profunda subjetivação, mesmo supondo (erroneamente, é claro) que todos os sujeitos são iguais.
Seguindo na linha deste desenvolvimento, você deve chegar à idéia do "homem normal" que, por falta de um mundo que possa ter em comum com outros, torna todos os homens iguais uns aos outros. E dado que isto é, obviamente, impossível, você tem uma situação em que todo mundo é "não normal e precisa de algum psicanalista ou de sabe Deus o quê para torná-lo igual "a todo mundo -isto é, igual a alguém que é ninguém, no sentido mais literal da palavra (1).
Agora historicamente: o ritual da dúvida começou com Descartes e só nele você vai encontrar os motivos originais: a real ansiedade de que não Deus, mas um espírito maligno, estivesse por trás de todo o espetáculo do Ser. Em Hobbes encontra-se o desenvolvimento coerente da argumentação moderna. Kant já tentou escapar desse predicamento. Perguntou: quais são as condições de nossa experiência? Crucial em Kant é que, para ele, e só ele, a mais elevada faculdade do homem é a de julgar (e não a de raciocinar, como para Descartes, nem a de tirar conclusões uma depois da outra, como para Hegel). (Hume, creio, não é tão interessante.) -Nietzsche: claro, especialmente tudo dos últimos manuscritos publicados com o enganoso título: ``A Vontade de Poder". Mas também o ``Zaratustra". -Depois, de Kierkegaard um pequeno tratado pouco conhecido sobre a dúvida cartesiana. ``De omnibus dubitandum est". -Por fim, mas não menos importante, Pascal.- Entre os filósofos modernos, acho que Heidegger é o mais interessante, porque tenta pensar Nietzsche em todas as suas consequências, enquanto, ao mesmo tempo, não perde de vista e mantém viva toda a tradição filosófica. Será publicado em breve um pequeno número de traduções em inglês, e muitas coisas foram traduzidas em francês.
Se me permite, vou acrescentar uma palavra minha, independente de situações históricas: a principal falácia é acreditar que a Verdade é um resultado que vem no final de um processo de pensamento. Ao contrário, a Verdade é sempre o início do pensamento; pensar é sempre sem resultado. Esta é a diferença entre "filosofia" e ciência: a ciência tem resultados; a filosofia, nunca.
O pensar começa depois de sentir o efeito fulminante, por assim dizer, de uma experiência da verdade. A diferença entre os filósofos e as outras pessoas é que os primeiros se recusam a deixar de lado essa experiência, mas não que sejam os únicos repositórios da verdade. Esta noção de que a verdade resulta do pensamento é muito velha e remonta à filosofia clássica antiga, possivelmente ao próprio Sócrates.
Se eu estiver certa e for uma falácia, provavelmente será a mais antiga falácia da filosofia ocidental. É possível detectá-la em quase todas as definições da verdade, particularmente na tradicional de "ae(de)quatio rei et intellectus (a conformidade entre o intelecto e a coisa conhecida). A verdade, em outras palavras, não está "no" pensamento, mas, para usar a linguagem de Kant, é a condição de possibilidade do pensar. É as duas coisas, início e a priori.
Chega de tudo isto -que acho que me é estritamente não permitido neste momento. (...)
Oppenheimer: ele me desagrada totalmente, mas claro que não é um perigo para a segurança, e a coisa toda é uma pena, embora tão grave. Em dez anos, os Estados Unidos terão ficado para trás em ciência e, na nossa idade, isto pode ser uma catástrofe. Neste ponto Rahv não está tão errado, realmente não se deveria trabalhar para o governo. Mas, se as ciências naturais aceitassem essa sabedoria, seria uma catástrofe, e das grandes.
Fico contente por você ter gostado do ensaio sobre a história. São todos assuntos secundários, e os publiquei sem nenhum bom motivo. No momento, traduzindo o antigo livro ("The Origins of Totalitarianism") para o alemão, estou infeliz e impaciente para voltar ao que realmente quero fazer -se puder (2). Mas este é um problema menor, isto é, se sou ou não sou capaz de fazer o que quero.
Heinrich dá um conselho maravilhoso a seus estudantes que falam em estudar filosofia: diz assim: é algo que você só pode fazer se souber que a coisa mais importante da sua vida seria ser bem-sucedido nisso, e a segunda coisa mais importante, quase tanto como a primeira, seria fracassar precisamente nisso.
Mal posso esperar para ver o que você tiver do romance (``A Charmed Life") e quiser mostrar. Nem preciso dizer, acho o assunto fascinante. E vamos nos reunir em breve, de uma forma ou de outra.

Com carinho para os dois. Sua,
Hannah

NOTAS:
(1) Um homem normal seria alguém que só pudesse dizer numa repetição interminável: dois mais dois são quatro. (Nota de Arendt inserida no alto da página)
(2) Os ensaios "Great Tradition", que Arendt escreveu durante este período, destinavam-se a serem incluídos em sua análise inacabada do marxismo, mas o que ela "realmente queria fazer pode ter sido o conjunto de reflexões sobre a mão-de-obra, o trabalho e a ação que nasceu desses ensaio e mais tarde se tornou "A Condição Humana" (1958)

Traduções de SIENI CAMPOS

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