São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Provocações da 'geração perdida'

Você precisa conhecer a amiga brasileira de Bishop

HANNAH ARENDT

7 de junho de 1957

Mary querida,
(...)
Tive a intenção de escrever imediatamente quando recebi sua carta, e então me envolvi em reflexões até não saber mais o que escrever. Mary, minha querida, temo que você tenha vivido um contato próximo demais com a variedade inglesa da "geração perdida" -o que, além de ser um clichê, é uma realidade. Eles são sempre o melhor e o pior, mas, de tal maneira, que cada um deles é ambas as coisas ao mesmo tempo. A mentira e ``pseudologia phantastica", sobretudo ``phantastica", e mentir sobre a própria origem e bancar o aristocrata na Inglaterra é, parece-me, tanto uma sátira contra os ingleses e um gracejo sobre seus padrões como, talvez, também a tentativa de usar a mentira para passar a ser o que não se é.
De certo modo, todos eles surgiram com um "Aqui está alguém em quem você não pode confiar" (como disse uma vez Brecht). O encanto deles é que, com todas as mentiras, são, de algum modo, mais verdadeiros que todos os filisteus que não mentem. Acho que é próprio desse charme as mentiras deles se referirem apenas a fatos -que virão à tona e mostrarão que eles são mentirosos, façam o que fizerem. (Ao passo que mentir sobre os próprios ``sentimentos" é realmente seguro: quem pode descobrir?)
Há uma suprema provocação nisso, e o que seduz é, entre outras coisas, essa provocação. Você sabe que acredito que se deve confiar na própria intuição, e, portanto, não acho que você possa ter-se enganado. Até o fato de se gabar de você deve ser visto sob este prisma: como ele era conhecido como mentiroso e sabia disto, realmente podia dar-se esse luxo -confiando, antes de mais nada, em que ninguém acreditaria.
E você tem todo direito de dizer que ele mentiu -creio que sem realmente ser falsa com ele. Quando um notório mentiroso fala a verdade, não quer que acreditem nele. Mas, certamente, ele também não quer ser salvo por você. E é esta a razão pela qual acho que você acertou em não vê-lo.
A pior parte da coisa é a bebida. Mas mesmo fora isto: há duas coisas que poderiam "salvá-lo": ou uma mulher, mas, neste caso, salvar para quê? Evidentemente, para alguma forma de respeitabilidade. Ou: mais que o talento, quase o gênio, ou um talento tão irresistível que sobrepujasse qualquer outra coisa. (É o caso de pessoas como Brecht ou Heidegger.)
Mas se este Quem eles são não for acompanhado por qualidades e dons à altura, o que resta a fazer? Então a vida torna-se um negócio longuíssimo e bastante tedioso; pois o Quem como tal nunca é reconhecido por nossa sociedade, não há lugar para ele.
Nessas circunstâncias, destruir a si mesmo e tornar-se autodestrutivo pode ser um trabalho prolongado e bastante honroso. Mais honroso e provavelmente menos entediante que se salvar. A única coisa que realmente não se pode permitir é arrastar outras pessoas para seus próprios divertimentos. Então, você precisava ser afugentada; e ele deve ter sabido que seria necessário recorrer a medidas bastante drásticas.
Sem dúvida, tudo isso tem muito de crueldade, mas não se pode esperar que alguém que a ama a trate com menos crueldade do que trata a si mesmo. A igualdade do amor é sempre bem terrível. Compaixão (não pena) pode ser uma coisa estupenda, mas o amor não sabe nada sobre o assunto.
Chicago estava muito bom e foi ótima a convivência com os estudantes, que gostaram de mim. ``A Vita Activa" (nome dado por Arendt a "A Condição Humana") está quase terminada, as últimas páginas ainda por serem escritas, o que odeio e tento não fazer enquanto posso. Assim, divirto-me com notas de rodapé. Tenho trabalhado um pouco demais e preciso de férias.
Tenho recebido mais visitas que de costume, e com prazer. Elizabeth Bishop veio com a amiga brasileira, que é uma mulher extraordinária que você provavelmente conhece (1). Se não, não deixe de conhecer. É divertidíssima e sabe contar muitos casos.
Soube por Bowden que a pneumonia acabou, e que você está hospedada em casa de Berenson. Bowden não sabia o novo endereço, escrevo ao hotel, de algum modo chegará até você.
Escreva-me contando como você vai. Li o livro de Alger Hiss ("In the Court of Public Opinion") mas não pretendo escrever sobre ele. Isto me envolveria em discussões e polêmicas pelo resto da vida. Uma coisa é certa: ele deveria ter um novo julgamento (2). A falsificação usando máquina de escrever, embora bastante difícil de imaginar, não é impossível, de forma alguma. Mas não poderia ter sido feita sem a ajuda do FBI: qualquer historiador lhe dirá que a história do serviço secreto é de tal índole que isto é uma possibilidade concreta.
Pessoalmente acredito que no momento metade do PC é composta de agentes do FBI. É óbvio que pessoas como Chambers, Hede Massing e Elizabeth Bentley (3) podem ser levadas a "lembrar" de tudo. O testemunho de Chambers é ainda mais suspeito e crivado de incoerências do que eu percebera. Mas Hiss também é pior do que eu pensava. Bastante obcecado com os erros de editoração, a má colocação de vírgulas etc. nas cópias. Ele tem a mentalidade de um editor de texto, é incrivelmente estúpido e também mentiroso, embora diferente da variedade Chambers. Em suma, sórdido.
Penso na frase de Clemenceau: "L'affaire d'un seul est l'affaire de tous" (o problema de um é problema de todos); mas não consigo me forçar a fazer nada a respeito. (Aliás, cito aquele rapaz, Podhoretz, temendo, por um momento, que eu quisesse fazer um artigo sobre o livro: "Oh, não, `Commentary' jamais poderia se dar ao luxo de tomar uma posição polêmica sobre o caso Hiss" (4) Sic! Esta frase quase me convenceu a fazer algo.)

Com carinho,
Hannah

NOTAS:
(1) A poeta Elizabeth Bishop foi colega de McCarthy em Vassar. Sua amante brasileira, com quem viveu em Ouro Preto nas décadas de 1950 e 60, era Lota de Macedo Soares.
(2) Em 1950, Alger Hiss foi declarado culpado de perjúrio por ter negado perante a Comissão de Atividades Anti-americanas que, no final da década de 1930, quando trabalhava para o Departamento de Estado, entregara a um militante do Partido Comunista (Whittaker Chambers) documentos confidenciais destinados a serem transmitido à União Soviética.
(3) Hede Massing e Elizabeth Bentley eram espiãs soviéticas confessas.
(4) Norman Podhoretz era editor associado de "Commentary" à época.

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