São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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overdoses

MARIO VITOR SANTOS

Três novatos resolveram experimentar ácido. Subitamente, em plena viagem psicodélica, todo o céu transformou-se numa enorme bola de fogo
Era 1971. No ano anterior, o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) havia feito uma investigação e prendido dezenas de estudantes na Escola Técnica Federal do Rio. Alguns sumiram e nunca mais deram as caras. Beta, uma italiana cheinha, de óculos fundo de garrafa, ficou na cadeia uns tempos até ser embarcada para a Europa. Antes, apanhou feio.
Uma espécie de chefe dos inspetores de disciplina havia comandado as prisões. Toda tarde ele aparecia no pátio, enorme, para conversar serenamente com os colegas, braços cruzados, o muque arrochando as mangas do guarda-pó branco.
Preocupado com agitação, nem ligava para um garoto de São Cristóvão. Embora aluno, usava o mesmo tipo de guarda-pó dos inspetores, para proteger a roupa do material químico usado nas aulas.
Ele adorava cheirar clorofórmio nas tardes de chuva dando voltas na pista de corrida em torno do campo de futebol. Ia até o anoitecer, quando ficava mais difícil ver de longe, na penumbra, sua silhueta encurvada dentro do guarda-pó comprido. Voltava cansado e molhado, cheio de visões para relatar. Às vezes, outro cabeludo branquela, que depois acabou na melhor escola do Exército, se juntava a essas caminhadas.
Um grupo maior fazia incursões do lado de fora, em que pontificava o destemido da Ilha do Governador. Além do clorofórmio, o destemido costumava subtrair grandes pedaços de sódio do laboratório.
O sódio reage vigorosamente com a água gerando hidrogênio, que às vezes detona, em função do calor liberado na reação. Animado pelos outros e pelo clorofórmio, o destemido postava-se no parapeito da ponte e arremessava grandes tascos de sódio ao rio Maracanã, sem sequer se dar conta de que a poucos metros ficava a casa do ministro do Exército, com sentinelas armadas nas guaritas.
A explosão atirava água aos ares. O estampido punha todos na correria mais divertida.
O grupo da zona sul preferia substâncias mais pesadas. Um deles exagerou no ácido (lisérgico), despareceu por três dias e voltou para casa em descontrole. Ao entrar, cumprimentou a mãe apreensiva, voou com os dois pés dando um "tackling (era o tempo das lutas de tele-catch) que nocauteou a geladeira. Voltou para a sala, sentou-se na poltrona diante da mãe desesperada, defecou, esticou o braço acima da cabeça e puxou a cordinha do abajur como se fosse a da privada.
A mais impressionante das histórias foi na Pedra da Gávea. Três novatos resolveram ir até lá para experimentar ácido. Subitamente, em plena viagem psicodélica, todo o céu transformou-se numa enorme bola de fogo, que não se extinguia, um cenário semelhante ao visto nos filmes que mostram testes de explosão nuclear: muita luz, labaredas, nenhum som. Era a profecia: a Terra extinta em chamas.
Impressionados por viverem alucinação coincidente, os três, tipos pouco atléticos, lentos, desceram o morro em pânico, escorregando, ralando-se em pedras e arbustos. Embaixo, na estrada, gritavam para os carros. Um deles chegou em casa com uma conversa estranha, alertando os pais para o juízo final, antes de desabar na cama.
No dia seguinte, souberam que tanques que armazenam combustíveis na refinaria Duque de Caxias haviam explodido, matando até quem passava na estrada, a quase um quilômetro de distância.

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