São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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nosso povo número um!

MARILENE FELINTO

O melhor povo do mundo somos nós mesmos, brasileiros, aqui nascidos, aqui crescidos. Em recente pesquisa do Datafolha sobre a imagem do Brasil, 46% dos turistas estrangeiros declararam que gostariam de morar no Brasil. É um número alto. Que outro país do mundo teria aceitação tão expressiva?
Temos pouca coisa de concreto a oferecer a esses estrangeiros. Nem dinheiro nem tecnologia nem conforto material que se compare ao do Primeiro Mundo. Só temos nós mesmos! Mas é o que vale: 39% dos estrangeiros consultados pelo Datafolha disseram que é o brasileiro o que o Brasil tem de melhor.
A pesquisa ilustra o que já sabíamos. Basta ter comparado umas poucas vezes a nossa índole com a dos europeus, por exemplo. A nossa constituição psicológica ou emocional, adicionada de certa lassidão de costumes, nos faz gente simpática, hospitaleira, bem-humorada.
Pouco importa se Amsterdã é uma festa -somos nós o melhor povo do mundo. Pouco importa se em Amsterdã os holandeses são abertos, progressistas. Ou mesmo se Amsterdã será talvez a mais mulata das capitais européias.
Por influência da gente das colônias e ex-colônias holandesas -como Curaçao, corruptela holandesa para o ``curação" português, o ``coração" brasileiro-, as ruas da cidade são salpicadas de gente mestiçada de negro com branco loiro, olhos verdes, pele escura.
Amsterdã tem clima, juventude, águas, canais e ventos, barcos e velas, a tradição das aventuras transatlânticas -a despeito disso somos nós, e nossas jangadas, o melhor povo do mundo. Os estrangeiros escolheram as praias e o povo como a melhor coisa nossa.
Em Amsterdã é como todo mundo diz: em um dos famosos coffee shops (uma espécie de boteco arrumado), pedimos café e maconha em pleno dia. Trouxeram o cardápio das drogas. Uma amiga escolheu skunk, um tipo de maconha. Pesou-se, pagamos. A droga (uns poucos gramas) seria mandada pelo correio para um amigo, em Munique. Simples assim, em envelope comum, como se fosse uma carta.
Pasmei. Liberdade será isso? Não era. Ao sair do boteco, observei o aviso na parede, escrito em holandês e inglês:
No agression
No hard drugs
No stolen goods
(Proibido agressão, drogas pesadas e mercadorias roubadas).
A contradição flagrante. A hipocrisia. Como se agressão, roubo e vício fossem atos voluntários, capazes de ser controlados por avisos de advertência. Pensei em nós, o melhor povo do mundo. Seria o mesmo que afixar no boteco da favela um cartaz: proibido matar.
Estranho povo europeu. Um amigo sergipano, especialista em Kant, me disse que os alemães, por exemplo, conceituam demais seus sentimentos. A amizade para eles é um conceito, enquanto para nós é uma experiência. Desse modo, em vez de viver a experiência como ela se apresenta, eles tenderiam a adaptar as relações interpessoais a seu conceito de amizade.
Somos nós mesmos o melhor povo do mundo. Não é triste? E sequer nos gabamos disso. Eu quis voltar logo para o meu país, onde o sistema é métrico e Celsius, onde eu tenho a medida mais certa das coisas. E que viva Kant, em Sergipe!

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