São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
Texto Anterior | Índice

Carro rouba a cena desde o começo do cinema

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

No início, os carros apenas assustavam -sobretudo os espectadores das primeiras filas que, ainda sem intimidade com o ilusionismo cinematográfico, se encolhiam em suas poltronas toda vez que um automóvel avançava na direção da câmera. Gritos, as luzes acendiam e o gerente subia ao palco para tranquilizar a platéia.
Menos de 20 anos depois, os carros, em vez de assustar a platéia, a divertiam, dando trombadas e cambalhotas nas comédias pastelão. Na década de 60, Hollywood inventou que eles podiam voar e falar. E, mais recentemente, que podiam matar e viajar ao passado.
Na pole-position, portanto, Mack Sennett, o pioneiro da comédia cinematográfica. Em 1913, matutando em seu set de filmagens sobre novas fontes de gargalhadas, Sennett avistou um carro e exclamou: ``Acho que encontrei um novo parceiro para todos vocês, pessoal". Foi assim que o Ford Bigode se transformou num dos mais pândegos comediantes do cinema mudo, companheiro inseparável não só dos Keystone Cops, mas também de Chaplin, Harold Lloyd, do Gordo e o Magro.
Até os Três Patetas pegaram carona nele, pois nem depois que o cinema ganhou com o Ford Bigode se aposentou das telas. Com o tempo, ganhou graça suplementar, enriquecendo com sua presença desengonçada e anacrônica as patuscadas de ``O Fantástico Super-Homem" e ``Deu a Louca no Mundo". No primeiro, aliás, ele voava. Não porque tivesse ao volante o ator que servira de modelo ao Capitão Marvel, Fred MacMurray, mas porque seus pneus eram feitos de uma substância especial, chamada ``flubber", mistura de ``fly" (voar, em inglês) e ``rubber" (borracha).
A despeito de sua cumplicidade com a gaiatice (acrescente ao seu currículo ``A Corrida do Século"), o Ford Bigode também se saía galhardamente em filmes dramáticos. Foi num Ford caindo aos pedaços que a família Joad rumou para a Califórnia em ``Vinhas da Ira". Os primeiros gângsteres do cinema também o apreciavam. Mas, conforme ficavam mais ricos, trocavam de modelo e marca. Nos anos 30, era em geral a bordo de Pierce Arrows, Lincolns, La Salles, Buicks, Plymouths e Studebakers que os sucedâneos de Al Capone assaltavam bancos e trocavam tiros com a polícia.
Não faz muito tempo, a Cinemateca Francesa planejou uma mostra sobre carros no cinema, para coincidir com um daqueles salões de automóveis que todos os anos agitam Paris. Acabou desistindo. Para ser expressiva, precisaria ser bem mais longa que a duração do salão. E ainda havia o problema da amostragem. Que filmes escolher? Por gênero? Por marcas de automóvel?
Por marca até que seria relativamente fácil. Cadillac? Outros filmes podiam entrar, mas ``O Cadillac de Ouro", razoável comédia com Judy Holliday, rodada em 1955, não podia faltar. Fusca? ``Se Meu Fusca Falasse" basta. Dodge? Maior rendimento que o Dodge Charger de ``Corrida Contra o Destino" (Vanishing Point), impossível.
Rolls-Royce? Pelo menos quatro merecem consideração: o do milionário de ``Luzes da Cidade", o de Humphrey Bogart em ``Sabrina", o de Marlene Dietrich em ``Quando Paris Alucina", e, obviamente, o que dá título à comédia ``O Rolls-Royce Amarelo". Aston Martin? O do James Bond não tem rival.
Já que falamos de automóveis ingleses, o valente Spyker de ``Genevieve", agradável comédia de Henry Cornelius com 42 anos de quilometragem, decerto se destacaria entre os filmes cujo protagonista é movido a motor de explosão. Até porque são poucos e insossos os seus concorrentes. ``O Calhambeque Mágico" não é uma exceção, longe disso, e só se qualifica por ser o único estrelado por um Edsel, o maior fiasco da indústria automobilística americana em todos os tempos.
Em meio a obrigatórios exemplos de alta octanagem fora das pistas de corrida tradicionais (``Bullitt", ``Operação Franca", ``Encurralado" ``Speed", ``De Volta para o Futuro", ``O Carro - A Máquina do Diabo", ``Batman"), sentimentalismo (``Conduzindo Miss Daisy") e biografismo (``Tucker"), seria um bálsamo cruzar com certos carros de Hitchcock, com o bólido conversível de Vittorio Gassman em ``Aquele que Sabe Viver". E provar, de forma definitiva, que o grande assunto de ``Soberba", a segunda obra-prima de Orson Welles, não é a família Amberson, mas a chegada do automóvel e seus efeitos imediatos na sociedade americana.

Texto Anterior: Motocicleta Titan 125 é a eterna campeã de vendas da marca Honda
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.