São Paulo, segunda-feira, 19 de junho de 1995
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'Quando o sujeito morre, o cadáver pertence à sociedade'

ANTONIO ROCHA FILHO
DA REPORTAGEM LOCAL

O cirurgião Silvano Raia, 64, é o pioneiro no transplante de fígado no Brasil. Realizou o primeiro em setembro de 85. A paciente, uma mulher com tumor, sobreviveu 11 meses. De lá para cá, sua equipe já fez 122 transplantes. Professor de cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, Raia foi secretário da Saúde no governo Paulo Maluf. Deixou o cargo no início do ano.
Ao discorrer sobre um tema polêmico -a lei aprovada pela Câmara, mas vetada por Maluf, que estabelece que qualquer pessoa que morrer terá seus órgãos considerados disponíveis, a menos que se manifeste contra em vida-, ele se diz partidário de uma corrente ``liberal". Diz que a autonomia da pessoa de decidir o que fazer com seu próprio corpo termina com a morte. ``Quando o sujeito morre, o cadáver pertence à sociedade."
Na última quinta-feira, ele recebeu a reportagem da Folha em sua casa. Abaixo, trechos da entrevista.

Folha - Como está a situação do transplante de fígado no Brasil?
Silvano Raia - De 85 até o começo de 95, fizemos cem transplantes. Em 95, nos cinco primeiros meses, já fizemos 22. A previsão é de 50 a 60 no ano todo. O aumento se deve à sistematização da técnica. Quanto aos resultados, no começo, havia entre 50% e 60% de sobrevida. Hoje 87% dos pacientes sobrevivem ao 1º ano.
Folha - Como é feita a escolha de quem vai receber o órgão?
Raia - O receptor tem que ter sistema sanguíneo compatível com o doador. Depois vem o tamanho. Aí, transplantamos primeiro aqueles em estado mais grave.
Folha - Quantas pessoas tem a lista de espera do Hospital das Clínicas? Raia - Oitenta. Por não receberem transplante, 50% a 60% dessas pessoas morrem.
Folha - Quais as doenças que mais se beneficiam com o transplante?
Raia - São aquelas em que, uma vez trocado o fígado, a causa da doença desaparece. Por exemplo, uma malformação congênita das vias biliares. Você troca o fígado e o problema nunca mais volta. Isso não ocorre nas doenças por vírus, como cirroses por vírus tipo B. Esse vírus se aloja em outros tecidos. Quando você coloca outro fígado, o vírus vai direto no enxerto (órgão implantado) e cria uma nova doença.
Folha - Cite técnicas novas de transplante de fígado.
Raia - Temos a técnica chamada inter vivos (entre dois seres vivos). Você tira um pedaço do fígado da mãe e coloca no filho. A mãe regenera o pedaço que deu e o filho aumenta aquele pedaço até o tamanho que precisa. Outra técnica é dividir o fígado em duas partes, no caso de fígado de cadáver. Cada parte vai para uma pessoa.
Folha - E as técnicas que se utilizam de animais?
Raia - O grande esforço está se dirigindo para aproveitar fígados e enxertos de animais, o que deve ocorrer nos próximos cinco anos. No caso do fígado, nós temos o porco, que tem um fígado muito semelhante ao do homem, pode ser criado com facilidade e sacrificado para retirar o órgão no peso desejado. Mas o fígado do porco tem rejeição maior que o do ser humano.
Folha - O que tem sido feito para se resolver esse problema?
Raia - Você pode desenvolver drogas imunossupressoras (que diminuem a rejeição) cada vez mais fortes. Mas elas têm efeitos colaterais. Ou então você trabalha no genoma (patrimônio genético) do doador, nesse caso o porco, e o aproxima do homem, inoculando os genes humanos. Você tem um receptor com cirrose terminal. Pega o patrimônio hereditário e inocula no óvulo de uma porca. Daí produz um doador específico para o doente. Isso já está sendo desenvolvido, mas ainda não foi feito nenhum transplante.
Folha - Onde está o problema que faz com que haja maior número de receptores do que de doadores?
Raia - O problema não está na negativa da família em doar órgãos, que é de aproximadamente 30%. O problema está na qualidade do fígado que chega à equipe que faz o transplante. No PS onde o paciente com morte cerebral está sendo assistido existe uma demanda muito maior do que a capacidade de atendimento. O médico dá mais atenção àquele que ainda está vivo. O doador é relegado a um segundo plano e acaba se deteriorando.
Folha - E o aspecto legal? Há uma polêmica recente sobre a autorização de doação de órgãos de uma pessoa morta.
Raia - Há duas grandes escolas, em relação à autorização. Existe um princípio básico do direito, o da autonomia. Cada um tem direito de fazer o que quiser do próprio corpo. O que se discute é se o cadáver persiste com sua autonomia ou não. Uma escola diz que, no momento em que um cadáver tem morte cerebral, ele perdeu a autonomia. Então a sociedade tem o direito de, através de uma quantificação legal, simplesmente tirar os órgãos e usá-los. Essa escola faz ressalva àquele que disse, em vida: ``eu não quero doar". Aí tem que ser respeitado. Essa é uma escola liberal. Eles se baseiam no Brasil no fato de que existe uma lei que diz que todo brasileiro que tiver morte violenta tem que ser autopsiado. Não tem escolha. Se a família não quiser, se ele não quiser, não interessa.
Folha - E o que pensa a outra corrente?
Raia - A outra escola diz que a autonomia persiste depois da morte.
Folha - Em que corrente o senhor se coloca?
Raia - Eu sou favorável à teoria liberal. Eu acho que se o sujeito morreu, ele pertence à sociedade. Mesmo porque, se não tivesse morrido, ele poderia ser candidato a receptor. Todos nós somos beneficiados e generosos ao mesmo tempo. Se discutido no foro adequado (Congresso Nacional), regulamentado com todos os cuidados, considerando a obrigatoriedade da autópsia de qualquer maneira, eu sou favorável à escola mais liberal, que diz que o cadáver pertence à sociedade e não à família ou a ele mesmo. Respeitarei, quem em vida, diga não.
Folha - Mas há uma lei federal em vigor que diz que a família precisa autorizar a doação...
Raia - A lei diz que é necessária uma anuência, ou da pessoa quando viva, ou da família. Recentemente a Câmara aprovou uma lei que era favorável a essa liberalização. Todo cidadão com morte cerebral seria automaticamente um doador. O prefeito decidiu vetar, com o meu apoio, essa lei. O foro para discutir esse assunto não é a Câmara. É o Congresso Nacional.
Folha - E a lei regulamentada pelo prefeito Paulo Maluf que prevê isenção das taxas de enterros para doadores?
Raia - Há quem diga que a lei está forçando quem não tem recursos para pagar o enterro a fazer a doação. Eu não vejo assim. Vejo a sociedade, grata pelo gesto de generosidade, sretribuir, custeando a doação com dinheiro público.

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