São Paulo, terça-feira, 20 de junho de 1995
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Nova ameaça aos povos indígenas

GILNEY VIANA; MARTA SUPLICY

No caso das terras indígenas, o governo federal tem que se pautar pelo interesse da União
GILNEY VIANA e MARTA SUPLICY
O governo federal está empreendendo uma mudança radical na política indigenista brasileira. A anunciada decisão de reformular o decreto 22/91, que estabelece as regras para os procedimentos de demarcação das terras, põe em risco as populações de nada menos que 368 áreas indígenas. É um retrocesso que ameaça recolocar o Brasil no grupo dos países que não respeitam suas etnias minoritárias.
A iniciativa do governo -surpreendente para um país que pouco a pouco vinha caminhando na consolidação dos direitos das comunidades indígenas- poderá criar novos e difíceis embaraços burocráticos para os processos de demarcação. Além disso, conforme tem admitido o ministro da Justiça, deverá levar à reabertura da discussão sobre os limites de muitas áreas já demarcadas.
Durante seus primeiros quatro meses, o governo Fernando Henrique manteve uma atitude dúbia em relação à questão indígena. Nenhuma nova portaria de demarcação foi assinada. Importantes processos de demarcação em áreas conturbadas por tensões sociais continuaram dormitando nas gavetas da burocracia federal. Ao mesmo tempo, a opinião pública era brindada com algumas declarações promissoras do presidente da República, e até com a assinatura de um acordo em que a Alemanha destinava US$ 22 milhões para custear as demarcações.
Fim do muro. Com a chegada da reforma constitucional, e na contingência de compor uma base política forte o suficiente para acabar com os monopólios estratégicos do Estado, o governo FHC fez uma opção perigosa na questão indígena.
O que se pretende, modificando o decreto 22, é possibilitar que pessoas eventualmente contrariadas contestem os relatórios técnicos em que a Funai aponta o perímetro da área a ser demarcada. Diz o ministro da Justiça que o rito estabelecido atualmente pelo decreto é inconstitucional, uma vez que não admite o contraditório previsto no artigo 5º da Constituição.
A mudança do decreto 22 é uma antiga reivindicação de fazendeiros, madeireiros, mineradores e outros segmentos que tradicionalmente se opõem à demarcação das áreas indígenas e que encontram ressonância em parlamentares que representam um número de votos nada desprezível dentro do Congresso.
A demarcação da terra indígena, ordenada pelo artigo 231 da Constituição, é uma obrigação do governo. Cabe-lhe identificar a área, conforme os parâmetros ditados pela Constituição, e demarcá-la. Não há que se falar em contraditório nesse procedimento, pois a área demarcada é constitucionalmente de propriedade da União. Além disso, o parágrafo 6º do artigo 231 diz que é juridicamente nula toda e qualquer reivindicação de terceiros sobre a mesma área.
Quando decide desapropriar um imóvel para a execução de uma obra considerada de interesse coletivo, a administração pública não é obrigada a consultar os proprietários. Aos insatisfeitos resta sempre o recurso ao Judiciário -e neste exemplo, apenas para discutir valores, não o mérito da desapropriação nem os limites da área envolvida.
No caso das terras indígenas, o governo federal tem que se pautar pelo interesse da União, ditado pelo artigo 231, em vez de se orientar pelo ponto de vista de interesses individuais contrariados, interesses estes que podem ser defendidos na Justiça.
Mas não é no plano jurídico que se vai entender a motivação do governo para sua investida contra o decreto 22, até porque qualquer controvérsia constitucional logo estará resolvida. O Supremo Tribunal Federal está julgando um mandado de segurança em que se alega exatamente a inconstitucionalidade do decreto 22, por não admitir o contraditório. Posta a discussão jurídica no lugar adequado, que é do outro lado da praça dos Três Poderes, por que se antecipar e mudar o decreto antes da solução judicial?
A resposta é uma equação política. Se o STF disser que o contraditório é exigível nos procedimentos administrativos de demarcação, o decreto 22 terá sido inconstitucional desde 1991, quando foi editado, e a alteração de véspera promovida pelo governo não significará nada senão um enorme desgaste junto à opinião pública nacional e internacional. Por outro lado, se o STF julgar constitucional o decreto como está, o governo ficará moral, legal e politicamente impedido de alterá-lo.
As intenções são claras. Em depoimento na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara, no dia 18 de maio, o ministro da Justiça disse que a nova versão do decreto 22 abrirá um prazo para a contestação dos limites das áreas que, mesmo já demarcadas, ainda não tenham sido registradas no Serviço de Patrimônio da União e nos cartórios de imóveis.
Assim, num universo de 557 áreas indígenas conhecidas, apenas 189 estariam livres de novas investidas contra seu território. As outras 368 (286 não demarcadas e 82 demarcadas, mas não registradas) poderiam ter seus limites contestados, e o juiz dessas controvérsias seria o ministro da Justiça, com sua reconhecida aptidão para a articulação política.
Se os questionamentos se restringirem ao gabinete do ministro, será o mal menor. Mais graves são os conflitos já instalados em muitas áreas, algumas delas invadidas, e que poderão se multiplicar com novas agressões e mortes diante da expectativa de uma revisão das demarcações, o que colocaria em risco a sobrevivência dos povos indígenas.
O decreto 22 tornou-se um divisor de águas na questão indígena. Querer modificá-lo a esta altura, quando estamos às vésperas de uma manifestação do Supremo sobre sua constitucionalidade, é servir aos interesses dos que nunca aceitaram a consagração dos direitos indígenas na Constituição de 88.

GILNEY VIANA, 49, médico, é deputado federal pelo PT de Mato Grosso e membro da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados.

MARTA SUPLICY, 50, psicóloga, é deputada federal pelo PT de São Paulo e membro das Comissões de Meio Ambiente e Minorias e de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

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