São Paulo, domingo, 25 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Racistas de coração

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Erramos: 02/07/95
A palavra discriminação foi grafada incorretamente na coluna "Domingueira", à pág. 1-13, em parte dos exemplares de 25/6.
Racistas de coração
Éramos quatro brasileiros num táxi, trafegando por Milão. Um moreno, uma descendente de italianos, uma negra e um negro -este falante, gestos largos, baiano. Gilberto Gil, que tinha acabado de se apresentar na cidade. A quinta personagem, evidentemente, o chofer. Um senhor lombardo, de cara amarrada.
Os lombardos não são exatamente efusivos com estrangeiros -o que para eles significa alguém nascido em qualquer lugar ao sul de Florença- e vivem atormentados pela presença de africanos vendendo bugigangas sob as filigranas góticas do Duomo.
O homem bufava seu desconforto por estar a serviço daquela gente misturada, risonha e faladora. Uma aura descriminatória nos acompanhou do automóvel ao restaurante, onde, mais uma vez, olhares alpinos nos congelaram. E acabaram levando a conversa para o assunto racismo. Tema sobre o qual Gil e Rosa, a amiga negra, tinham um livro de experiências para contar.
Naquele momento, a descriminação era um problema em ebulição na Itália. Havia um anúncio contra o racismo na TV, mostrando um negro sendo crucificado. Conflitos sérios tinham acontecido em Florença. E a Lega Lombarda, de Umberto Bossi, iniciava sua triunfante cruzada, pregando a autonomia do norte e olhando enviezadíssima para os invasores da terra dos Visconti.
O racismo italiano é complexo e multifacetado. País-mosaico, a Itália, ela mesma muitas vezes desprezada na Europa, é um vitral de dialetos e costumes, pequenas e grandes rivalidades.
A maior delas é a que divide norte e sul. Os ricos setentrionais descriminam os pobres meridionais impiedosamente. O anedotário é vasto e pichações nos muros contra os ``terroni" são mais ou menos comuns.
Mas há, paralelamente, uma crescente intolerância, especialmente no norte, com aquilo que italianos eufemisticamente chamam de ``extracomunitari". Ou seja, os que não pertencem à Comunidade Européia -negros africanos em primeiro lugar, mas também marroquinos, árabes, ciganos, gente do Leste, asiáticos e latino-americanos.
Hordas de estrangeiros têm invadido a Europa nos últimos anos. Muitos que se dirigiam às ex-metrópoles dos tempos coloniais, bloqueados, passaram a procurar a Itália.
Não há negros italianos, como há negros franceses e ingleses. Africanos não falam italiano. Não têm inserção de espécie alguma na sociedade, a não ser vender isqueiro, colares ou coisas mais perigosas nas ruas.
Também na Itália, um pouco como no Brasil, percebe-se que racismo e descriminação social se confudem em graus variados. Embora italianos, diferentemente de brasileiros, tenham uma inclinação bam mais acentuada para a xenofobia provinciana. Claro que a chegada em massa de estrangeiros, com hábitos diferentes, quase sempre indecifráveis, é um fator de desequilíbrio em presépios mais ou menos harmônicos, como os lugarejos e bairros italianos.
Além disso, a Itália -apesar de toda aquela gente que passou por ali- tem um perfil étnico mais coeso que o do Brasil.
Brasileiros, aliás, pouco sofrem por lá, caso tenham vestígios físicos da herança européia e alguma situação social. Rosa, no entanto, black baiana sem meias-palavras, tinha seus bate-bocas. Quase todos, na realidade, terminados em pizza.
Mas foi no Brasil onde, certa vez, ela viveu uma extraordinária situação de racismo, reveladora dessa ``cordialidade" de que falou Sérgio Buarque de Hollanda, a partir de uma expressão cunhada por Cassiano Ricardo.
Pedidos de desculpas, sentem-se, por favor, vamos registrar a ocorrência.
Sentaram-se. Um fulano começou a datilografar. Nome, tal. Idade, tal. Local de nascimento, tal. RG, número tal. Cor... Bem, o cordato datilógrafo não perguntou. Olhou o belo rosto da baiana e sapecou no boletim: ``branca".

Texto Anterior: Maioria dos líderes não exerce atividade rural
Próximo Texto: Publicidade do governo custa R$ 382 mi
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.