São Paulo, domingo, 25 de junho de 1995
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Escritor retribui em livro o asco causado pelas lições de anatomia

MARIO CESAR CARVALHO
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Foi na Escola de Polícia do Rio que Rubem Fonseca aprendeu o nome e a localização no corpo humano de órgãos, músculos, ossos, veias, artérias, glândulas e orifícios. Sentiu a variedade de cheiros de um corpo em putrefação e conheceu a diferença entre um corte de punhal no estômago e uma picaretada na testa.
Nasceu no Instituto Médico Legal, no centro do Rio, um dos recursos recorrentes de Fonseca: a obsessão por detalhes anatômicos, a fixação em corpos retalhados que atravessa a sua obra, de ``Os Prisioneiros" (1963) a ``O Selvagem da Ópera" (1994). Foi a lição de anatomia do escritor.
Fonseca teve aulas de medicina legal durante um ano. Para os futuros comissários se habituarem ao mundo-cão que os esperava, assistiam sessões de dissecação de cadáveres logo depois do almoço, às 14h, duas vezes por semana, segundo um dos companheiros de turma de Fonseca, o delegado aposentado Mário César da Silva.
``Ele foi um excelente aluno de medicina legal penal", diz Silva. ``Nosso professor, Manoel Seve Neto, era um grande médico-legista. Tinha muita fé na ciência. Ensinava que a trajetória da bala ou do ferimento determinava a posição do criminoso. Zé Rubem tinha um interesse especial por isso."
Seve Neto era um grande e heterodoxo médico-legista. Suas aulas eram de um realismo assustador, como conta o advogado e delegado aposentado Ivan Vasques, companheiro de classe de Fonseca na Escola de Polícia.
``Seve Neto mostrava para nós coisas que até hoje as pessoas sabem só por teoria. Uma vez ele mostrou como seria o ferimento de uma picaretada na cabeça. Pegou a picareta e, tum!, deu na cabeça de um defunto. Fomos lá ver o ferimento quadrado, certinho. Ele dizia: `Só não tem sangue porque ele já morreu. Mas o sangue se espalharia assim, assim'. Era fogo".
Jorge Pastor de Oliveira, 75, delegado aposentado que dava aulas na Escola de Polícia nos anos 50, lembra-se de outros atrevimentos de Seve Neto. ``Ele mostrava a diferença entre um ferimento de punhal e um de faca num cadáver. Muita gente saía da sala."
Fonseca, segundo Vasques, ``sofria com essas coisas, mas resistia com bravura". A bravura do aprendiz de comissário e Seve Neto viraram matéria de ficção.
Vasques diz que o conto ``Duzentos e Vinte e Cinco Gramas", do livro ``Os Prisioneiros", relata o asco e a bravura do aluno José Rubem Fonseca durante uma autópsia (leia trecho abaixo).
``Aquele conto do médico-legal aconteceu. Nós estávamos lá. Foi uma aula do Seve Neto. O médico mede a quantidade de sangue no corpo, pesa o coração e verifica que tem 225 gramas. Eu não me impressionei porque tinha tendência de fazer advocacia criminal. Zé Rubem ficou impressionado com todo aquele sangue porque só tinha feito advocacia cível. Quem ouviu aquele puta que o pariu foi eu, o Marinho (Alfredo José Marinho Filho, hoje desembargador) e o Mário César, possivelmente. Descemos no elevador, o coração pesava 225 gramas e o Zé Rubem disse: `Puta que o pariu!' ".
Fonseca retribuiu o asco que as aulas de Seve Neto lhe causavam 32 anos depois. Em ``A Grande Arte" (1983), o antigo professor vira personagem com uma letra do nome trocado: é o legista Sette Neto, professor de medicina legal não da Escola de Polícia que Fonseca frequentou, mas da Faculdade de Direito que o Dr. Mandrake cursara.
A repulsa que Seve Neto causou em Fonseca deve ter sido enorme pelos adjetivos que ele cola em Sette Neto em ``A Grande Arte" (leia trecho abaixo).
No livro, o professor é descrito como um ``tirano frio" que se transforma num ``idiota descabelado" quando um dos alunos o desafia com seus conhecimentos de anatomia.
(MCC)

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