São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 1995
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Música perde Arturo Benedetti Michelangeli, seu maior pianista

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há um conto de Henry James que serviria bem de comentário à carreira de Arturo Benedetti Michelangeli. Neste conto (``The Coxon Fund", nunca traduzido), a personagem central é um filósofo, baseado no poeta romântico Coleridge, que, embora reconhecido por seus amigos como o maior gênio da era, jamais comparece às palestras que deve dar, e só raramente chega a escrever suas idéias no papel.
Também, Michelangeli -que morreu na semana passada, aos 75 anos- foi um pianista de concertos cancelados e gravações infrequentes. Nem por isto alguém duvida de que foi um dos maiores, talvez o maior pianista do nosso tempo.
Os concertos cancelados de Michelangeli fizeram parte da vida musical dos últimos 40 anos. Ele se recusava a tocar em qualquer outro piano que não o seu próprio Steinway. Transportava este piano para outras cidades; mas recusava-se igualmente a tocar se a atmosfera, o movimento, ou os astros lhe perturbassem a afinação, ou o timbre.
Inevitalmente era isto o que acontecia: para os ouvidos de Michelangeli, aquele piano tinha um tom particular, que era o seu tom, a sua verdade, e seria desonesto apresentá-lo ao público de outra forma. Acabava não tocando.
A sonoridade é mesmo uma das marcas de Michelangeli. Nas gravações (as oficiais não chegam a 15; mas há muitas outras, ``piratas"), cada nota vive um momento ideal. Em parte por este motivo, ninguém tocou Debussy melhor do que ele.
Mas isto é só uma parte: ninguém tocou a ``Balada em sol" de Chopin, ou as ``Mazurcas", melhor do que Michelangeli; ninguém tocou as ``Baladas" de Brahms, ou a ``Sonata em si bemol maior" de Schubert.
Não é só de som que se faz música, e Michelangeli era, acima de tudo, um narrador, ou ensaísta das interioridades -de tudo na música que vem resistir à imperfeição ou à vagueza de um mundo meramente externo.
Ninguém ouvia o tempo musical como ele: uma vertigem lenta, um virtuosismo do pensamento e dos nervos, que às vezes parece mais uma questão de moral do que de talento.
Este é o lado monástico de Michelangeli, que aliás passou um ano entre os franciscanos, quando jovem, depois de experiências como esquiador de neve, piloto de corridas, aviador do exército italiano e membro da resistência antifascista. Mas a meditação se confunde com a sensualidade neste pianista de notas perfeitas, mais o Flaubert do que o Pascal do piano.
Em meio à vida que se esfarela, havia, até pouco tempo, Michelangeli. E era um conforto pensar na integridade musical do professor de Lugano, uma escola das percepções, naquele terreno onde o pensamento e a sensação formam uma coisa só. Maurizio Pollini e Martha Argerich foram dois alunos de Michelangeli; cada um levou a extremos um dos lados de sua personalidade.
Recentemente, foram lançados alguns CDs com gravações antigas (décadas de 30 e 40). Há muito de surpreendente na sua interpretação da ``Chaconne" de Bach ou das ``Variações sobre um tema de Paganini" de Brahms. Já se adivinha o nosso Michelangeli neste pianista fogoso de vinte e poucos anos. Mas ``adivinha" talvez não seja a palavra mais certa; pois só em retrospecto pode-se ouvir o Michelangeli velho no moço.
As gravações são uma lição. Ele poderia ter sido um outro Horowitz, ou um Rubinstein. Escolheu algo de mais raro e mais difícil: escolheu ser Michelangeli.
Arnaldo Cohen, há alguns meses, relembrou (no programa ``Roda Viva" da TV Cultura) uma tirada do pianista. Perguntado sobre quem seriam seus músicos prediletos, Michelangeli, manhosamente, respondeu: ``sono tutti morti" (estão todos mortos).
É de se pensar que o mundo jamais teve tantos pianistas brilhantes como hoje. Mesmo assim, e sem fazer manha, acho que não estou sozinho quando lamento que o maior de todos já não esteja entre nós. Passei uma vida esperando para ouvi-lo em concerto. Cheguei perto uma vez, mas foi cancelado. Talvez haja até alguma justiça nisto: um concerto nunca ouvido de Michelangeli é o concerto mais lindo de todos.
Restam, pelo menos, suas gravações, como fotografias de um som que nunca se ouviu. Estranho pensar que a música, a mais impalpável das artes, possa servir de contrapeso do mundo. Mas é isto, não é? Michelangeli morreu, e a sensação que se tem é a de que o mundo perdeu um pouco de lastro.

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