São Paulo, quinta-feira, 29 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O Sivam e o imperador da China

<UN->ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

As justificativas para o Sivam já caíram por terra; resta a hipótese de que seja só mais um tributo
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
Kowtow é uma forma de saudação que se tornou corrente durante o período de dominância do Império do Meio na China, após o longo período de perturbações que se seguiu à queda da dinastia Han em 208 A.D. Era usada por embaixadores e chefes militares de outras nações ao se apresentarem ao imperador da dinastia Wei, ou a um seu representante. O gesto característico do Kowtow era uma prostração de corpo inteiro que simbolizava a submissão absoluta à China, que se considerava a ``Única Cultura".
O interessante deste cerimonial, entretanto, é que se originara de uma progressiva ritualização do que historicamente era apenas um pagamento de indenizações, pelo qual os países fracos retribuíam a proteção recebida do poder central. E, por isso, este ritual diplomático manteve o nome de ``Sistema de Tributos".
E é interessante que em línguas tão diversas quanto aquelas derivadas do latim e o mandarim o mesmo vocábulo sirva para designar ``reverência" e ``imposto". Como que para manter claras suas origens, o sistema de tributos chinês era permeado por troca de presentes entre o imperador e os embaixadores.
Quando pela primeira vez teve o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia) que ser explicado à opinião pública, foram apresentadas várias justificativas. Em primeiro lugar, é um sistema de proteção ao vôo. Ora, um sistema de proteção ao vôo, extrapolados os custos dos três já instalados no Brasil, não custaria mais do que US$ 300 milhões. E depois de termos implantado três e tê-los operado durante anos, se não somos ainda capazes de fazer o quarto é porque alguma coisa está visceralmente errada nesta específica administração de serviços.
Afinal, durante a implantação dos três primeiros ``Dacta" houve uma crescente participação da engenharia nacional. Não é, pois, o sistema de proteção ao vôo que justificaria a contratação de um consórcio externo.
A segunda justificativa do Sivam era o controle do contrabando. Em primeiro lugar, fez-se notar que não bastaria detectar o traficante. Seria preciso interceptá-lo, e isso exigiria toda uma parafernália militar e policial que não sabíamos nem sequer quanto custaria. Mas agora fomos surpreendidos pela confissão de um porta-voz do Ministério da Aeronáutica de que, de fato, o Sivam seria ineficiente até mesmo para detectar o contrabando.
Vejamos por quê: radares de solo são incapazes de detectar aviões voando a baixa altitude, e é duvidoso que radares aerotransportados sejam eficazes, a menos que aviões em grande número e 24 horas por dia se mantenham no ar na vasta região a ser coberta. Os radares imagiadores são um absurdo ainda maior, dizem os especialistas, pois seus dados são inferiores àqueles produzidos por satélites orbitais, e o Brasil já dispõe de acesso ao ERS-1 europeu e em breve poderá contar também com o canadense Radarsat.
O Sivam estaria assim, a custos muitos superiores, fazendo um serviço de qualidade inferior àquele que já pode ser realizado com as atuais disponibilidades técnicas. É claro que há algumas dificuldades. A Embraer deixaria de vender um monte de aviões para transportar os radares. A Aeronáutica e a Infraero iriam deixar de executar uma série de tarefas, embora inúteis. E essas deliciosas viagens ao exterior. E de comprar equipamento.
Mas vamos à terceira justificativa do Sivam, a proteção ao meio ambiente. Muito vivo esse pessoal da Esca. Nós, brasileiros, temos um coração muito mole quando se trata de conservação da Amazônia. Fazemos qualquer coisa para isso. Mas foram ousados demais. Incluíram no Sivam os projetos em andamento. E não fizeram nada além disso. Mas não deixaram claro que estes programas já estavam adiantados e pagos.
O Sivam se propõe a realizar o ``mapeamento da floresta". Ora, isso já está em grande medida realizado pelo Inpe e pelo Ibama. Se propõe o Sivam a realizar o ``zoneamento ecológico econômico da Amazônia", quando a própria Secretaria de Assuntos Estratégicos e o IBGE, com auxílio dos Estados, já estavam elaborando esse programa.
O Sivam serviria também para detectar queimadas na região. Mas esse serviço já é feito com muita propriedade há pelo menos uma década pelo Núcleo de Monitoramento Ambiental da Embrapa e pelo Ibama. O Sivam propõe construir estações de recepção de imagens de satélites meteorológicos. Mas essas imagens por meio da Internet já podem ser fornecidas pelo Inpe em tempo real.
Deve também ficar claro que o pessoal técnico que opera o controle de tráfego aéreo, competente e que já existe no Brasil, é absolutamente inadequado para a rotina das múltiplas operações relativas à vigilância ambiental. Não há, portanto, razão técnica para acoplar controle de tráfego à vigilância ambiental, e isso nunca foi feito em lugar algum do mundo. Essa pretendida integração é inteiramente artificial, e, como a parte relativa ao ambiente já está em grande parte realizada fora do âmbito do Sivam, muito provavelmente ficaria marginalizada.
Enfim a quarta justificativa, sempre mencionada de maneira velada, também se mostrou um artifício retórico. Dizia-se que o Brasil salvaria a empresa de mísseis Raytheon americana juntamente com outras 20 suas coligadas, mas que, em troca, a Força Aérea Americana salvaria a nossa querida Embraer. Uma mão lavaria a outra. Uma daquelas tucanadas (que não me entendam mal: Tucano é o nome das aeronaves que seriam vendidas pela Embraer). Mas os americanos, ao que parece, não sabiam do negócio. Realizaram uma concorrência, e a Embraer não foi escolhida.
Como se vê, todas as justificativas para o Sivam já caíram por terra. Resta apenas a hipótese de que este seja mais um tributo. Aliás, o empenho e a urgência, quase um frenesi, que nossa administração demonstrou para que pudesse o presidente do Brasil levar pessoalmente a notícia da aprovação do contrato ao americano lembra um pouco o sistema chinês de tributos. Somente o kowtow é hoje um pouco simplificado, pelo menos no gesto externo, senão na intenção.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 61, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.

Texto Anterior: METODOLOGIA; NÃO É SÓ DELES; COMO?; INSEPULTO
Próximo Texto: Contribuição de emergência para a saúde
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.