São Paulo, sexta-feira, 30 de junho de 1995
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O barco branco

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Nada a ver com a vitória do Fluminense, aliás, caiu temporal durante o primeiro tempo, e o meu time fez dois a zero. Mas a verdade é que os dias estão lindos neste início de inverno. O Rio é mais Rio no verão, quando -como dizem os franceses- é bom suar. Sem jogar no lixo a temporada folgazã do carioca, prefiro a cidade nesse meio-ano.
Embora não seja outono, as amendoeiras na praça Paris ficam douradas, o chão coberto de folhas -anos atrás, trazendo Otto Maria Carpeaux para o trabalho, ele comparou a paisagem a um quadro de Utrillo. Um vienense, o Carpeaux: seu referencial era a cultura européia. Sou carioca, meu referencial é minha própria raiz, Utrillo uma ova, o meu Rio é como aquele relógio do português que às vezes era de ouro e às vezes não era.
Tropical ou impressionista, a cidade talvez não seja boa para se viver, mas é ótima para se olhar. Quando acordo, olho a Lagoa, que renasce a cada manhã como a criança. São três planos superpostos: o céu muito lavado, nem se pode dizer que é azul; as montanhas, que deviam ser verdes, ficam indecisas sobre a cor que o Sol trará a cada uma delas, e a Lagoa em si, lâmina que mistura em suas águas as cores que ainda não se definiram.
Eis que surge, enfim, uma cor nítida, estanque: é um barco de corrida, comprido, branco, uma brancura de creme, de filme de Visconti. Corta com a decisão de seu branco esse amontoado de cores que aguardam o Sol para serem azul ou verde, pelo menos até que a tarde chegue e misture tudo outra vez.
Os barcos de regata costumam ser da cor dos violinos. Mas este, que vem todas as manhãs, é branco. É ele que recebe a primeira luz do Sol que enfim deu a cara, depois de vencer a nua pedra do morro dos Cabritos. E é dele que a luz parece se espalhar, o céu fica azul, verde a montanha, o dia nasceu da pele escura da Lagoa cortada pelo barco branco.
É um Rio bom que vejo a cada manhã. Depois leio os jornais. Olho mais uma vez a Lagoa: o barco branco sumiu. Amanhã virá outra vez.

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