São Paulo, sexta-feira, 30 de junho de 1995
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Rebeliões nos presídios

SÉRGIO ADORNO

Os fatos têm se repetido. Com frequência, a opinião pública é sacudida com notícias de rebeliões nos presídios paulistas. Aqui e acolá, seja em estabelecimentos penitenciários de grande porte, seja em delegacias policiais, cidadãos condenados ou sob tutela das instituições encarregadas de controle da ordem pública amotinam-se.
Armados, tomam funcionários como reféns e reivindicam fugas sob o patrocínio do poder público. O desfecho desses acontecimentos, que colocam em confronto as forças da legalidade versus o mundo dos ilegalismos, tem caminhado no sentido da negociação, do diálogo e do convencimento dos amotinados, procedimentos que evitam vítimas fatais e restabelecem a ordem.
Na semana passada, em Hortolândia, ao que tudo indica, não foi possível recorrer a esse procedimento. Diante da radicalização do conflito, com a morte deplorável de funcionários justamente incumbidos de zelar pela segurança do presídio -e, por essa via, pela segurança dos demais cidadãos deste Estado da Federação-, optou-se pelo recurso mais arriscado: o emprego de uma força maior para conter a demonstração de força dos tutelados pela Justiça.
O cidadão comum, espectador desses acontecimentos, pouco pode intervir. Diante do vídeo de TV pelo qual passivamente acompanha os noticiários, ou lendo cotidianamente seu jornal, não tem como indagar do poder público se as mortes, de quem quer que seja, poderiam ter sido poupadas. Mais do que isso, fica no ar uma pergunta sem resposta: por que as rebeliões se repetem com tanta frequência, em curto espaço de tempo e -o mais grave- com as facilidades com que ocorrem?
Pesquisadores não têm muito a oferecer como resposta. A pesquisa sociológica sobre as prisões no Brasil ainda não se debruçou detidamente sobre os fatos. Mesmo assim, é possível desde já aventar hipóteses para um debate.
É notória a rapidez com que alguns cidadãos, autores de infração penal, aguardando decisão judiciária ou condenados pela Justiça, se organizam para perpetrar motins e rebeliões. Lideram tais movimentos com tal desembaraço, como se dispusessem de experiência anterior acumulada. Sabem como negociar e como enfrentar as forças da ordem.
Por isso, nos últimos anos, não vem mudando apenas o perfil da criminalidade urbana violenta. Lentamente também começa a se alterar o perfil da população recolhida às prisões. O crime organizado, sobretudo o narcotráfico, está na ordem do dia. Suas ações tornam-se mais violentas. Assim, nada impede de pensar: sintomas do crime organizado já atravessaram os muros das prisões, contaminando parcelas da população sob tutela da Justiça Penal.
O mais inquietante, contudo, são seus efeitos colaterais sobre o poder público. Como se sabe, o tráfico de drogas compreende um conjunto diversificado de atividades e operações que articula, em nível internacional, a produção, a circulação, a distribuição e o consumo.
Por intercambiar uma mercadoria proibida na maioria das sociedades, mobiliza toda uma ``economia subterrânea": distintos mecanismos de acumulação geram renda, parte da qual substantivamente apropriada da remuneração de atividades subsidiárias, como abastecimento de armas, manutenção de milícias particulares, treinamento de pistoleiros profissionais e a manutenção de uma rede física de colaboradores destinada a facilitar o transporte da droga por variados meios.
Daí a funcionalidade da corrupção em todo esse processo, cujos sinais de intensificação, no sistema penitenciário, parecem estar associados ao relaxamento da vigilância e ao comprometimento de alguns funcionários, ilusoriamente seduzidos pelas benesses oferecidas pelo crime organizado. A frequência das rebeliões não parece ter outra explicação imediata que não seja a entrada irregular de armas nos presídios.
Contra esse cenário, o que se tem visto? Todos parecemos testemunhas da progressiva redução da capacidade do Estado de gerenciar a segurança pública, circunstância que se agrava com os cortes de gastos nessa área da intervenção estatal. No domínio das prisões, a política de aumento de ofertas de novas celas não tem contribuído para debelar o principal problema do setor: a superpopulação prisional.
Em sua raiz, repousam uma série de outros problemas -sobretudo a violência de presos contra presos, de presos contra agentes penitenciários e vice-versa-, que tornam as condições sociais nas prisões completamente inseguras, seja para a vida daqueles responsáveis pela preservação da disciplina e da segurança, seja para a vida daqueles que se encontram sob tutela da Justiça Penal.
Mais que isso, a superpopulação corrói qualquer possibilidade de fazer das prisões algo diferente do que um espaço privilegiado de punição e de imposição do sofrimento.
Se antes, dizia-se, o direito do preso era fugir, hoje é rebelar-se! Não há outra alternativa diante de uma política penitenciária que, preocupada em aumentar celas, não dota os novos presídios de condições adequadas de funcionamento, entre as quais salários dignos para os funcionários, compatíveis com o elevado risco que a atividade comporta, preparação eficiente e atualizada, mediante programas de reciclagem proporcionados, por exemplo, por uma escola de administração penitenciária.
Mas é preciso maior ousadia política. ``Despovoar as prisões", como vem gravado em um número recente da revista francesa ``Projet". Trata-se de, efetivamente, pensar penas alternativas à prisão, esta instituição ``inventada" no século 19 e que teria na atualidade esgotado suas funções ``terapêuticas".
Talvez assim fosse possível minimizar o peso que a pena privativa de liberdade ocupa não apenas no imaginário judiciário brasileiro, como também em suas práticas. Reduzindo-a, reduzir-se-ão seus inconvenientes, impedindo as oportunidades de corrupção, estabelecendo-se claras fronteiras entre as funções públicas e os interesses privados e, por fim, tornando as rebeliões acontecimentos do passado.

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