São Paulo, sexta-feira, 30 de junho de 1995
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Palmares _cidadania e violência institucionalizada

BENEDITO DOMINGOS MARIANO

O mito ou engodo da democracia racial surgiu no Brasil, primeiramente, como forma de o colonizador evitar conflito social e racial, pois já em meados do século 19 a população negra era superior à branca. Num segundo momento, com o surgimento do capitalismo, propunha o branqueamento e a integração ``formal" dos negros à sociedade, o que na prática jogou ao segmento negro a culpa da sua própria condição de discriminado. É necessário enfatizar sempre que houve resistência à dominação dos colonizadores.
A República dos Palmares é o maior exemplo. Apesar da pouca documentação -grande parte dela foi fornecida pelos que a destruíram e maiores dados foram transmitidos via oral e não pela escrita (origem africana)-, a República dos Palmares representa um dos maiores momentos da história do Brasil, que não faz parte da história oficial. Com Palmares o negro deixa de ser ``coisa".
Enquanto em 1789 o mundo conhecia a Revolução Francesa, pela qual os conceitos formais de direitos individuais se tornariam universais, não era possível nem falar em direitos do negro no Brasil, na medida em que o escravo não era considerado humano. Para a estrutura jurídica do sistema, ele era coisa.
Com a nova fase de desenvolvimento do Estado, o negro, que durante quatro séculos foi o maior trabalhador da sociedade brasileira, passa a ser rotulado de preguiçoso, ocioso, de má índole para o trabalho. O negro continuaria sendo escravizado e não incorporado efetivamente como cidadão à sociedade e não é pelo acaso que hoje forma o grosso da população das favelas e cortiços.
Criou-se no Brasil o que o professor Clovis Moura chama de ``divisão racial do trabalho". O negro é reserva barata de mercado. O engodo da democracia racial continua com uma nova roupagem. Agora ``o negro não tem prestígio social porque não quer, gosta de samba, é malandro". O formalismo jurídico, a concepção liberal do processo de interação social absolve os racistas.
Veja-se o aparato repressivo do Estado: se antes para o negro havia corrente, tronco, palmatória, chicote e açoite, hoje, para muitos órgãos de segurança, todo negro é um criminoso em potencial. Para ele são reservados o pau-de-arara, as máquinas de choque etc.
A violência policial, dos justiceiros, linchamentos etc. faz do negro o alvo preferencial. E muitas vezes o policial negro é o mais violento contra o negro. É como se, em uma maior repressão ao negro, ele, policial negro, se sentisse superior ao próprio negro e, subjetivamente, numa alienação perversa, se sentisse um pouco branco.
Por isso, as entidades da sociedade civil comprometidas com a luta contra a discriminação racial no Brasil têm que priorizar na sua ação a luta para reestruturar e democratizar o aparato repressivo do Estado. O apartheid não é social, como querem muitos; existe um apartheid racial no Brasil, disfarçado, mas que tem efeito destruidor. Como diz o escritor uruguaio Eduardo Galeano: ``a cultura dominante nos quebra em pedacinhos, quebra a nossa memória, quebra nossa visão da realidade, tornando difícil manter a unidade do olhar."
Temos que exigir que a história da República dos Palmares e da resistência negra no Brasil seja matéria obrigatória nas escolas desde o pré-primário. Nossas crianças têm que crescer sabendo que, entre os heróis do povo, como Tiradentes, estão figuras imortais como Zumbi e Pacifico Licutã, um dos líderes da grande revolta baiana de 1835.
Temos que priorizar, no debate nacional, a impunidade. Se nos séculos passados as normas jurídicas tratavam negros como coisas, hoje, apesar dos avanços constitucionais, das normas internacionais de proteção aos direitos humanos, ainda vivemos sob o império da impunidade. Ao cidadão negro é negada cotidianamente a cidadania. A ele reservam-se as maiores violações. E relembrar a resistência negra no Brasil passa necessariamente pela constatação de que, hoje, a população negra sofre violações de seus direitos culturais, econômicos, sociais, individuais e coletivos.
E para se ter garantida a cidadania e combater a violência (a geral e a institucionalizada), são necessárias uma nova consciência crítica da violência e medidas de aperfeiçoamento legislativo, com vista a uma nova política de segurança e cidadania. A Constituição de 1988 garantiu diversos direitos individuais e coletivos, mas manteve intacta uma estrutura de segurança pública autoritária.
Nossas polícias civil e militar necessitam ser recicladas e democratizadas. É necessário desmilitarizar a polícia, que ainda carrega conceitos da doutrina de segurança nacional que vêem no negro, no pobre, no favelado, o ``inimigo interno". É necessário federalizar os crimes contra os direitos humanos: quando um agente do Estado cometer um crime previsto em tratados internacionais de que o Brasil é signatário, a Justiça Federal, e não a dos Estados, é que deve julgar. Exigir que essas questões sejam inseridas na pauta de prioridades da revisão constitucional é nossa tarefa.
Temos que conjugar segurança pública e cidadania, e isso só será possível com a participação da sociedade civil. ``Enquanto existir monopólio da riqueza, do prestígio social, da cultura e do poder, não teremos democracia." Enquanto persistir a desigualdade racial, não teremos democracia. Essa é uma luta de todos os democratas e de todos os setores excluídos e marginalizados da sociedade.

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