São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Nada pelo social

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Os seis primeiros meses do governo Fernando Henrique Cardoso, que culminaram com a desindexação dos salários, foram marcados por uma forte inclinação economicista.
Toda a ação governamental tem partido da idéia de que nada pode ser feito sem que, previamente, resolva-se o problema da inflação e assegure-se, a qualquer custo, a estabilidade.
O raciocínio parece irrefutável: numa economia inflacionária e desorganizada, o planejamento é impossível e todo esforço para elevar a qualidade de vida da população está condenado a naufragar.
Tudo, portanto, deve esperar até que a economia venha a ser posta em ordem. Quando isso ocorrer, o mercado começará a agir, o governo poderá cuidar de suas tarefas sociais e estaremos entrando no melhor dos mundos.
Tal lógica -tratando-se, mais ainda, de governantes com passado de esquerda- não deixa de encontrar paralelo na tradição marxista: nada é possível, salvo paliativos, sem que antes elimine-se o capitalismo.
É recorrente na história das esquerdas a idéia de que, em primeiro lugar, ataca-se a ``contradição principal". A seguir, o resto.
Reivindicações minoritárias dos anos 60/70, como o movimento negro, a revolução de costumes, a reforma das instituições psiquiátricas e o feminismo, sempre encontraram resistências nos partidos marxistas -mesmo quando formalmente acolhidas.
Tudo aquilo era importante, dizia-se, mas deveria esperar o desenlace do problema central: superar o pecado capital da economia.
É óbvio que o tema econômico é fundamental e que o governo FHC tem na estabilização sua prioridade.
Mas é fantasiosa a a idéia de que o controle da inflação já é, em si, o maior benefício social. A inflação anual do Paraguai é de 16%. A do mês de maio foi de 0,9%. Menos da metade da taxa do Plano Real.
A esquerda promoveu, durante décadas, o mito de um futuro redentor, lugar no porvir onde as contradições se dissolveriam e o bem reinaria entre os homens. Esse lugar, que se chamava sociedade comunista, parece chamar-se, hoje, ``Primeiro Mundo, com desenvolvimento auto-sustentável e inflação de um dígito".
O problema é que, enquanto vivemos o paraíso artificial da estabilidade, explodem penitenciárias, o narcotráfico controla territórios inteiros aliado à polícia corrupta, a devastação ambiental segue adiante, o estrangulamento da saúde é um fato, o abandono da infância é vergonhoso, o déficit habitacional e o analfabetismo idem.
Claro que é preciso dinheiro e tempo para enfrentar esses problemas. Mas não só. É preciso políticas, imaginação e vontade.
E quanto dinheiro? O que se poderia fazer com os R$ 2,8 bilhões gastos com a bancada (``Luiz Inácio falou") ruralista?
Por que o governo pode, atropeladamente, contrariar ou favorecer interesses para combater o déficit comercial, evitar a desvalorização do real ou conseguir votação de emendas, e não pode usar seu peso político para obter recursos para a área social?
Não se viu de FHC, neste seu início de governo, um gesto convincente, um movimento decidido nos setores sociais.
O próprio ministro Sérgio Motta criticou a ``masturbação sociológica" em Brasília. E é Jatene, figura identificada com a direita do governo, o único a espernear para defender uma área de interesse crucial para a população pobre.
Jatene deve ter lá suas pretensões políticas, dizem que é severo e ambicioso. Mas é ele, no governo, quem parece encaixar-se melhor na figura do ``intelectual específico", de que falou Michel Foucault, lá pelos idos dos 70.
Ou seja, aquele cuja militância desenvolve-se no campo de seu saber e que se universaliza quando seu problema assume, em dado momento, a dimensão do interesse geral.
O intelectual específico contrapõe-se ao modelo do ``escritor", portador do universal, figura clássica, com a qual FHC certamente identifica-se mais.
O fato é que o presidente disse: ``O país não é pobre, é injusto". Que se comece a olhar, então, aqui e agora, um pouco mais as injustiças.

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